Depois do bem-sucedido mas exaustivo processo criativo na série Dois Irmãos, um dos melhores programas exibidos pela TV brasileira neste ano, o ator Cauã Reymond decidiu dar um tempo. “Eu estava feliz, mas muito cansado. Programei um período sabático para não fazer nada”, disse ele, que não conseguiu descansar nem um segundo – no mesmo dia em que tomou a decisão, recebeu o telefonema do cineasta Felipe Bragança, entusiasmado por finalmente poder rodar o filme Não Devore Meu Coração, estrelado por Cauã. “Tentei resistir, mas, quando Cacá Diegues e meu agente Mario Canivello disseram que eu tinha de estar no longa, desisti das férias e rumei para Mato Grosso”, conta o ator, cujo resultado poderá ser visto nesta terça, 31, na Cinesala, às 19h45, como parte da programação da 41.ª Mostra Internacional de São Paulo.

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Inspirada em dois contos de Joca Reiners Terron, a trama acompanha a paixão de Joca (Eduardo Macedo), menino brasileiro de 13 anos, pela menina indígena paraguaia Basano (Adeli Benitez). Eles vivem na fronteira entre os dois países, marcada pelas águas do Rio Apa, mas o que impede o amor é a eterna sombra da Guerra do Paraguai, o maior conflito armado internacional ocorrido na América do Sul, travado entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, composta pelo Brasil, Argentina e Uruguai. A guerra estendeu-se de dezembro de 1864 a março de 1870 e provocou cerca de 300 mil mortes.

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Joca convive ainda com os segredos de seu irmão mais velho, Fernando (Cauã), um misterioso agroboy envolvido com uma perigosa gangue de motociclistas da região.

“Apesar do jeito de Fernando, não é possível identificar uma maldade em seu caráter”, avalia Cauã. “Ele quer agir como adulto, mas ainda continua um adolescente. Com o tempo, fiquei com dó de Fernando e seu desnorteio na vida.” O que o fez adiar as desejadas férias foi a opção do diretor Felipe Bragança – que estreia na direção solo de um longa depois de coassinar roteiros como o de Praia do Futuro, de Karim Aïnouz – em apostar em um filme de arte com personagens de temperamentos tão distintos. “Pretendi não apenas filmar em locais citados no texto de Terron como também trabalhar com pessoas que não são atores”, disse o cineasta.

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É o caso, por exemplo, do casal central, Eduardo Macedo e Adeli Benitez, cuja espontaneidade artística confere uma incrível veracidade à trama. “Para mim, foi um tremendo desafio”, lembra Cauã. “Precisei ficar isolado no hotel durante quase todo tempo, pois havia muitos fãs na porta. E, ao encenar com os não atores, Felipe me pedia para não conversar com ele, para não tirar o frescor da interpretação de cada cena. Tive de ficar um bom tempo sem conversar com ninguém.”

A performance de Cauã é determinante para contrabalançar com a de Eduardo, uma vez que os dois irmãos revelam conflitos opostos, além da eterna sombra representada pela Guerra do Paraguai. “Esse conflito ainda representa uma cicatriz que carregamos dentro da chamada identidade brasileira. E o filme fala dessa cicatriz”, atesta o cineasta.

Cauã entregou-se inteiramente ao desafio, algo que vem marcando sua carreira. Afinal, o espectador atento já percebeu que não se trata apenas de um rosto bonito e um corpo sarado – aos 37 anos, o ator exibe uma combinação fascinante de ambição e insegurança, e a tensão entre esses dois impulsos faz surgir uma sensibilidade inteligente e atenta para a escolha dos papéis mais desafiadores. Cauã parece ser um homem satisfeito consigo mesmo, daí a procura, na arte, por tipos completamente distintos do seu dia a dia.

É o que explica, por exemplo, sua participação em Piedade, filme de Cláudio Assis, que rodou no início do ano no Nordeste e no qual, uma vez mais, subverte a imagem de galã. Ali, ele vive Sandro, dono de um cinema pornô, homossexual, pai de um filho muito jovem (Gabriel Leone) e com histórico de rejeição, fruto de um momento na vida antes de entender a própria sexualidade. Ao longo da trama, é possível descobrir a conexão que seu personagem mantém com a de Fernanda Montenegro, matriarca e dona de um bar na praia que dá nome ao filme.

“Como comecei cedo minha carreira, tenho muitas horas diante da câmera e já me sinto mais relaxado”, conta ele, divertindo-se com as especulações sobre as fortes cenas que dividiu com Matheus Nachtergaele, no filme. Cauã não ostenta sua masculinidade – ao contrário, sempre põe a própria imagem à prova. “Produzi o clipe dirigido pelo Daniel Rezende para falar sobre respeito, sobre tolerar e respeitar o que é diferente”, relembra, referindo-se ao vídeo de Your Armies, música de Barbara Ohana, lançado em 2016, em que interpreta uma transexual.

Escritor de versos desde jovem, o ator apoia-se na poesia para entender seus roteiros. “Poemas me ajudaram a entender a engrenagem da escrita”, conta Cauã, que lembra da frase de um craque, o poeta alemão Rainer Maria Rilke, para revelar sua crença na profissão: “Escrevo poemas, mas não consigo viver sem poesia”.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.