A australiana Shannon Murphy preferiria que o foco nos textos sobre Dente de Leite fosse o fato de ser o filme de uma diretora estreante, escrito por uma roteirista (Rita Kaljenais) debutante no cinema também, em vez de ter sido apenas um dos dois concorrentes ao Leão de Ouro no Festival de Veneza dirigidos por uma mulher. “Porque essa seria a manchete se eu fosse um homem”, disse, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo na cidade italiana. O drama sobre uma adolescente que sofre de câncer e tenta sair da bolha imposta pelos pais ao se apaixonar tem sua primeira exibição nesta sexta-feira, 28, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
“Não me interessa que sou uma das duas mulheres numa competição”, disse. “Quero discutir coisas específicas, o que está errado nesta indústria e nas artes em geral, e o que devemos fazer para mudar.” Em sua carreira, sempre encontrou dificuldades de entender o que esperavam, mesmo no teatro. “Muitas vezes, sugeriam que jovens diretoras como eu tinham de ficar com as peças mais alternativas, que não podiam fazer os grandes clássicos. E não porque os grandes clássicos são para os homens, mas, sim, porque têm um orçamento maior. Então, a conversa toda sobre homens e mulheres é muito mais sutil do que parece, e é isso que com o tempo acaba impedindo as mulheres de alcançar seu pleno potencial.”
Ela cita o exemplo de ser indicada para um prêmio de melhor direção. E, no ano seguinte, todos os seus contemporâneos, todos homens trabalhando no mesmo teatro, tinham conseguido um projeto maior. “E eu fiquei com o mesmo projeto, apesar de ter sido eu a concorrer ao prêmio”, disse. “Esse foi o primeiro sinal de que havia algo errado. Mas me enlouqueceu. Eu culpei minha personalidade. Foi muito perturbador.”
No filme, Milla (Eliza Scanlen, da série Sharp Objects) é uma adolescente superprotegida e até sufocada pelos pais, Henry (Ben Mendelsohn) e Anna (Essie Davis), por causa de sua doença. Mas tudo muda quando ela conhece o rebelde Moses (Toby Wallace, que ganhou o prêmio Marcello Mastroianni de melhor ator jovem em Veneza). O tema do filme não é exatamente novo, mas é tratado com delicadeza e diálogos bem escritos, além de contar com boas atuações do elenco principal e personagens sólidos.
“Fico feliz de interpretar uma garota que mostra o que é ser mulher e o que é feminino de maneira diferente”, disse Eliza Scanlen. “Ela é cheia de facetas, e aqui exibimos suas estranhezas.” A atriz quer trabalhar com diretores de ambos os sexos, mas destaca que as mulheres têm uma sensibilidade particular, especialmente no que toca a personagens femininas – Eliza acaba de rodar Adoráveis Mulheres com a cineasta Greta Gerwig. “Elas veem as questões femininas por uma lente feminina, o que é importante. E eu me sinto mais confortável em me abrir com elas, especialmente ao falar de assuntos pessoais, como a primeira vez que me apaixonei.”
Uma das coisas que Shannon Murphy descobriu em sua estreia como diretora de longas – seu currículo é formado majoritariamente por produções teatrais – foi o “olhar feminino”, em contraposição ao “olhar masculino” tão discutido hoje em dia por sexualizar o corpo feminino e tratar as mulheres como objetos. “Eu acho a discussão sobre o olhar feminino e o olhar masculino muito interessante”, disse Murphy. “Apaixonar-se pela primeira vez para uma mulher é um sentimento muito elétrico e obsessivo. Queria explorar o corpo de Moses sob o ponto de vista de Milla. Nós adicionamos elementos como seu cabelo, suas tatuagens, para que Moses parecesse quase de outro mundo para Milla, para que estivéssemos com ela em suas descobertas.”
O filme também é cheio de cores, que representam a saída de Milla da concha em que seus pais a mantém – na maior parte do tempo, a adolescente é a pessoa mais consciente e calma diante da gravidade de sua doença. Seus pais abusam de drogas legais, por exemplo, e entram em discussões por nada. Milla só quer aproveitar o que podem ser os últimos momentos de sua vida, inclusive namorando o “bad boy”.
A primeira experiência num longa-metragem deixou um gosto de “quero mais” em Shannon Murphy. Mas, por enquanto, ainda não tem nenhum projeto no cinema. Ela saiu de Veneza quase diretamente para o set da terceira temporada da série Killing Eve, ganhadora do Emmy de melhor atriz para Jodie Comer, que é escrito pela estrela do momento, Phoebe Waller-Bridge, e protagonizado por duas mulheres complexas, numa relação muito complicada.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.