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De volta a SP, Paulinho da Viola fala sobre os sambas imortais

Há algo em Paulinho da Viola que preserva seu menino. A idade de fora, 76 anos, não bate com a de dentro, uns 22, e isso se percebe sobretudo em sua voz, a mais fiel janela da alma de um homem que não parece perceber – ou não dá a mínima para isso – os títulos que a vida lhe deu. Quando fala com jornalistas, algo que faz raramente mas com prazer, pede desculpas quando aparenta algo que pode soar imodesto. “Desculpe, quem sou eu para falar sobre isso”, diz ele, mesmo quando o assunto é o samba.

A noite de hoje, 18, terá Paulinho no palco do Tom Brasil. Seu show não será exatamente o que chegou a ser divulgado por alguns sites. Ele quer mais tempo para fazer o que pretendia: uma homenagem ao centenário do pai, Cesar Faria, uma sessão instrumental de choro e, o que provoca as maiores expectativas, a revelação de algumas músicas novas e nunca gravadas que vem burilando em casa, sem pressa, por alguns anos. Esse show deve ser feito apenas no segundo semestre, segundo o próprio. “Ah, talvez, depende de algumas coisas”, diz, quase misteriosamente, sem se comprometer com datas. Por ora, será o show de Paulinho da Viola de Dança da Solidão, Foi um Rio que Passou em Minha Vida, Filosofia, Coração Leviano, 14 Anos e tudo o que, às vezes, não cabe em uma noite.

A frase de Paulinho que fez mais história do que algumas de suas músicas, “eu não vivo no passado, o passado vive em mim” conduz sua vida. Seu último disco com músicas novas é de 1996, Bebadosamba – 23 anos se passaram -, e não há previsão para outro. Ele nem sabe se álbum é algo que valha a pena em um mundo musicalmente tão estilhaçado. “A gente tem que pensar em como lançar músicas agora.” Material tem, só resta a vontade de gravar.

A cobrança por sambas novos não é algo que pareça pressioná-lo. Paulinho segue em sua vida bucólica com a mulher Lila na casa cercada pela natureza de Itanhangá, no Rio, uma vida da qual a música não tem exatamente funções vitais. Há um antigo aparelho de vinil na sala, com LPs que vão de Elvis Presley à MPB, e uma oficina para suas marcenarias de quintal. Ele sai, visita amigos, lê. “Existem pessoas que acordam e compõem, gente que cria todos os dias. No meu caso, levo muito tempo sem nem tocar no instrumento. Música, para mim, não é um exercício diário.”

Muitas de suas histórias passam por Fernando Faro, o produtor e idealizador do programa Ensaio, da TV Cultura, morto em 2016, aos 88 anos. E aqui, ele chega.

“Foi com Fernando Faro que eu aprendi, lá nos anos de 1976, por aí. Ele dizia: ‘Paulinho, é importante que você consolide o seu trabalho, o público precisa de tempo para conhecê-lo’. Aprendi com ele a não ter desespero.” E, então, Paulinho começa a falar sobre seu jeito de criar e a traçar um perfil psicológico que faria o êxtase dos psicoterapeutas. Uma boa mostra da produção de Paulinho da Viola se deu exatamente sob o estado que ele tanto abomina, a pressão. Quando ela existiu, as portas da criação se abriram das formas mais curiosas.

A mais clássica deve ter acontecido com o próprio Faro. Paulinho foi visitá-lo um dia, quando Faro pensava no que fazer com a trilha sonora da novela Simplesmente Maria, que seria exibida pela extinta TV Tupi entre 6 de julho de 1970 e 26 de junho de 1971. Ao ver Paulinho à sua frente, teve uma iluminação seguida de um instinto um tanto selvagem. “Paulinho, queria que você fizesse a música de abertura dessa novela.” “Ah, claro, posso começar a pensar em alguma coisa.”

“Não, queria que fizesse agora.” “Mas agora eu não consigo, nem tenho um violão.” “Eu dou um jeito nisso.” Faro arranjou o violão e deixou Paulinho em uma sala. Um provável exagero da oralidade diz que a porta da sala foi trancada para Paulinho não fugir. Ele mesmo não se lembra. O fato é que ficou ali até terminar a encomenda, e saiu vitorioso. Simplesmente Maria, a música, não é tocada nos shows, mas tem potencial para isso. Ganhou, para a abertura da novela, arranjos de cordas e um acabamento elegante. Mostra Paulinho em uma de suas melhores formas, com uma introdução perfeita em letra e acordes.

Um compositor que já fez Dança da Solidão e Coração Leviano pode competir com ele mesmo? “Como posso fazer para superar o que já fiz?”, perguntaria a si enquanto rasgaria papéis com esboços de versos equivocados. Paulinho ouve tudo e ri. “Não, não funciona assim comigo.” Ele se lembra do disco da filha, Beatriz Rabello. Ela estava quase no dia do lançamento quando mostrou o que tinha gravado ao pai. Ele ouviu, se inundou da energia jovem daqueles olhos brilhando que um dia foram seus e passou a compor, um ato que só se explicaria ali, naquela situação, por amor.

Quando terminou, mostrou para a filha. A música não só entrou na lista como se tornou o nome do disco, Bloco do Amor. Mesmo sem ter tido nenhum pedido por parte de Beatriz, Paulinho cedeu à pressão sentimental que fez a si mesmo. Um álbum da filha sem uma música sua não deveria lhe cair bem.

Mais pressão havia chegado logo depois de Simplesmente Maria. Três anos depois, em 1973, quem ligou foi Guto Graça Mello, então diretor musical da Rede Globo. Guto queria uma música para uma nova novela que estrearia em poucos dias, Pecado Capital. Paulinho aceitou: “Ele então me enviou uma sinopse de poucas linhas e eu estranhei. Estava acostumado a fazer samba-enredo para escolas com 48 versos e, de repente, vinha aquele textinho.” O telefone tocou já no dia seguinte: “E aí, está pronta?” “Mas já?” “Paulinho, preciso dessa música para ontem”. De violão em punho, ele se sentou e fez a música que ficaria em sua história em uma madrugada. “Dinheiro na mão é vendaval / É vendaval / Na vida de um sonhador / De um sonhador / Quanta gente aí se engana / E cai da cama / Com toda a ilusão que sonhou…”

Na manhã seguinte, os músicos já o esperavam no estúdio para a gravação. Paulinho levou a introdução e a harmonia da música escritas. A base foi gravada, ele colocou a voz, os técnicos mixaram e, duas ou três horas depois, um motoqueiro já levava o áudio em uma fita para a Globo. Guto ligou ainda naquela tarde para dizer uma frase curta e sem muita profundidade, como se não soubesse que acabava de fazer a história passar por seus dedos. “Ficou legal.”

“Desculpe, não quero parecer pretensioso quando digo isso, mas você não tem consciência do que está fazendo, não é algo que controla, está em você”, diz Paulinho. Então, como uma música chega? “Eu vinha dirigindo da zona sul do Rio para casa um dia, por volta da meia-noite. De repente, me veio uma ideia forte de uma melodia. Fiquei louco, queria decorar aquilo naquele momento, mas não consegui e não tinha como gravar. Quando cantei de novo, já era outra música.” E assim, vários sambas passaram, viveram por segundos e morreram em Paulinho da Viola. “Muitos mesmo.”

Outros ele consegue capturar. E, mais uma vez debaixo do sarrafo, lá foi Paulinho da Viola sentar-se com um gravador no colo, ouvindo a melodia que Elton Medeiros mandou para que ele criasse uma letra. Não é a forma que mais gosta de criar, fazer letras para melodias que já existem, mas Elton é amigo e merecia. Elton ligando, a fita girando e a ideia não vinha. Em um estalo, uma porta paralela se abriu e Paulinho passou a criar uma outra música, com uma outra melodia e nenhuma semelhança com a melodia do parceiro. Memórias Conjugais foi parar no disco Bebadosamba. Mais tarde, Elton ganharia sua letra também.

Paulinho da Viola

Tom Brasil. Rua Bragança Paulista, 1.281, Chácara Santo Antônio. Hoje (18), às 22h. Ingressos:

R$ 120 a R$ 250.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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