São Paulo – Dogville, a mais importante estréia de hoje nos cinemas, foi exibido no Festival de Cannes do ano passado sob intensa polêmica. Seu diretor, o dinamarquês Lars von Trier, viu-se acusado de antiamericano em função do conteúdo da obra, uma parábola clara sobre a intolerância. Questionado, Von Trier nem piscou. Confirmou que o momento histórico não era mesmo bom para os Estados Unidos e que ele havia se limitado a fazer seu trabalho de cineasta. Se os outros não gostavam, paciência.
O detalhe é que Von Trier trabalhou com elenco americano – Nicole Kidman, Ben Gazzara, Lauren Bacall, James Caan, entre outros – e a história, parte de uma trilogia sobre os Estados Unidos, é ambientada na América, durante a Depressão.
O cineasta não conhece os EUA e nem acha que isso seja uma falha em seu currículo. Chegou a dizer que a hora não lhe parece propícia para uma visita à terra de Bush. Quando lhe perguntaram se não era estranho alguém filmar temas americanos sem conhecer os Estados Unidos, Von Trier encontrou uma boa resposta: “A cultura americana é difundida compulsoriamente pelo mundo todo; estamos todos imersos nela e portanto autorizados a falar dela”. E provoca: “Eles se preocuparam em estudar o Marrocos para filmar Casablanca?”.
A história em si, já é bem forte. A cidade imaginária fica nas Montanhas Rochosas. Nicole interpreta Grace, fugitiva que chega misteriosamente. Por algum motivo, ela tem de encontrar um protetor. E o encontra, na figura de Tom Edison (Paul Bettany). Ele usa sua influência para fazer com que a cidade aceite Grace. Ela é aceita. Depois é amada. Em seguida, passam a usá-la. Como sua presença de certa forma representa um risco para a cidade, os habitantes têm de ser recompensados.
As mudanças de atitude em relação a Grace não parecem nunca artificiais. Antes, soam como lógicas, desenvolvimento de uma relação sempre tensa com o “outro”, com o estrangeiro, com aquele que chegou “à nossa terra”, de quem nos sentimos credores e esperamos portanto que retribua a nossa acolhida. Até onde vai esse poder?
Bem, esse é um dos temas de Dogville. Há nele um lado, digamos assim, pessoal ou psicológico, que examina quando uma relação de favor pode se transformar em sadismo. Mas, claro, o foco é político e em nenhum momento escapa ao espectador que se está falando em termos mais gerais, em relações de poder entre nações e não entre pessoas.