Era impossível esconder o sorriso às primeiras audições de Blackstar, 25º disco solo de David Bowie, lançado no dia do seu aniversário, 8 de janeiro. O britânico completava 69 anos e mostrava a mesma capacidade camaleônica de outrora. Fundia jazz ao rock experimental, flertava com horizontes sombrios em versos embebidos de dor e despedidas, e o fazia com o gás de um adolescente.
A um ano de ingressar na casa dos 70 anos, Bowie mostrava a inquietação da juventude. Era incapaz de permanecer naquele mesmo lugar ocupado por ele em The Next Day, álbum prévio, lançado três anos antes, também próximo à comemoração do aniversário do inglês. Deu alguns passos a frente, em uma caminhada sempre progressiva iniciada lá no fim dos anos 1960 – embora o mundo só tenha o notado na década seguinte. Blackstar, contudo, era mais do que “mais um disco de David Bowie”. Blackstar é “o último disco de David Bowie”.
Tony Visconti, produtor que acompanha o inglês desde o primeiro sucesso, com Space Oddity, de 1969, escreveu sobre o trabalho no seu Facebook. “Ele (Bowie) fez o que queria fazer. E ele gostaria de ter feito (o disco) dessa maneira. Queria da melhor maneira. Que sua morte não fosse diferente da sua vida – uma obra de arte. Ele fez Blackstar para nós, como presente de despedida.”
Talvez, na alegria ingênua da imortalidade das lendas, tenhamos deixado de notar as pistas deixadas por Bowie ao longo desses 41 minutos de música, divididos nas sete derradeiras canções. Bowie gritava, em nossos ouvidos, de que já não era Ziggy Stardust, ou The Thing White Duke. Era a estrela negra. Bowie, o homem que levou o pop para espaço, cantou como um alienígena entre nós, voltava para onde veio. Uma estrela extinta na vastidão do espaço sideral que sempre o encantou.
“I’m a blackstar”, repete Bowie, quase messiânicamente, na faixa que dá nome ao disco. É estranha, um jazz torto. Jazz pela essência, pela liberdade, com toques eletrônicos à la trilogia de discos em Berlim (Low, Heroes e Lodger, lançados entre 1977 e 1979). “No centro de tudo, seus olhos”, repete o britânico, ao fim da primeira parte da canção de quase dez minutos. “Algo aconteceu no dia em que ele morreu / Alguém pegou seu lugar / O espírito dele se levantou por um metro e se afastou.”
A morte, a despedida, a partida. Tudo estava ali, escancarados pela voz de Bowie. E pelos seus gestos e encenação no clipe de Larazus, uma das mais potentes canções criadas pelo inglês em décadas. No vídeo, Bowie tenta escrever sua despedida, mostra-se atormentado pelo fantasma da própria personalidade e, por fim, esconde-se no vazio de um armário, como um espírito que decide voltar à toca. O vídeo deixava aberta a possibilidade de que Bowie poderia voltar. Ele sabia, contudo, que não haveria retorno. Nós, não.
Lazarus, no disco, chega na sequência de ‘Tis a Pity She Was a Whore, faixa jazzística na raiz, já divulgada como sobra do disco anterior, The Next Day. Ganhou nova cor com a nova banda que acompanha Bowie em Blackstar, a vanguardista Donny McCaslin Quartet, mas tematicamente foge do enfrentamento da morte – assim como em Sue (Or In a Season of Crime). As sombras se espalham, portanto, nos novos arranjos da canção, que funciona como uma escada para a sequência apocalíptica.
A bola volta para Lazarus. São memórias de Bowie-versão-Blackstar, como essa figura que se despede da vida e da luz, derrama nostalgia a cada verso gritado, anunciado com sopros quase celestiais. “Olhe para mim, meu caro, estou em perigo”, indica o inglês. “Não tenho mais nada a perder.” Bowie aceita a morte que lhe acompanha por 18 meses naquela batalha contra o câncer. Quer voar como um pássaro, diz ele, na canção.
Cada peça do quebra cabeça deixado por Bowie se monta aos poucos, diante de uma nova audição de Blackstar. Girl Loves Me traz a percepção do tempo que passou. Aos 69 anos, ele vê a vida deixada para trás. Tudo passou rápido demais, diz ele.
Dollar Days e I Can’t Give Everything Away exibem o conforto com o fim próximo. Sob essa nova visão, a melancolia colide no ouvinte como o oceano agitado arrebentando, dia e noite, o penhasco a sua frente. “Agora e depois, não acredite que eu estou esquecendo de você. Estou tentando esquecer. Estou morrendo para esquecer”, diz ele em Dollar Days.
I Can’t Give Everything Away não encerra o último disco por acaso. “Percebendo mais e sentindo cada vez menos. Dizendo não, mas querendo dizer sim. Isso é tudo o que eu sempre fui. Essa é a mensagem que eu mandei”, canta ele aqui. “Eu não posso deixar tudo ir embora”, repete, por vezes incontáveis, até o fim da canção, o fim do Blackstar. A voz dele fraqueja, frágil diante do fim iminente.
Bowie não trabalha com sorte ou destino. Nunca o fez. Expõe meticulosamente tudo aquilo que quer. Ele não poderia previr que a morte viria dois dias depois de colocar na praça o álbum de despedida, mas sabia que ela viria e, com ela, a última peça do enigma se completaria. Ao morrer, transformou aquela sensação revigorante de se ouvir um Bowie renascido em penumbra. Diante da percepção de cada verso no qual Bowie disse adeus e não notamos, a felicidade produzida pelo disco deixa de existir. É o canto do cisne de uma lenda. O adeus em definitivo. E, por mais belo que o Blackstar seja, não é mais possível divertir-se mais com ele. Não por enquanto. O luto transforma a surpresa em melancolia, o gosto doce em um sabor amargo. Invariavelmente, o sorriso vai embora também.
“Para onde foram parar as segundas-feiras?”, questionou o músico em Girl Loves Me. David Bowie morreu num domingo, sem ter a chance de ver a segunda-feira, este 11 de janeiro, na qual o mundo parou para se despedir dele uma última vez.