Foi feliz a estréia escolhida para encerrar a programação do Festival de Teatro de Curitiba, que terminou domingo (27), depois de onze dias de maratona envolvendo cerca de 200 espetáculos em 47 diferentes espaços teatrais. Foi Carmem Miranda, de Antunes Filho, que abriu a mostra principal e um dos mais talentosos atores desse mestre, Luís Melo, a encerrou com um delicado e comovente espetáculo baseado em contos do russo Anton Chekhov (1860-1906), Daqui a duzentos anos.
Um bonito tablado circular feito de material de demolição prensado fez as vezes de palco numa das salas do Ateliê de Criação Teatral (ACT), um centro de pesquisa criado em Curitiba por Melo nos moldes do CPT-Sesc dirigido por Antunes. Em torno do tablado, arquibancadas formam uma arena completa. Ao sinal para o início do espetáculo, entram os atores Melo, Janja, André Coelho e Edith Camargo. Estão em roupas de dia-a-dia e sorriem para a platéia, num descontraído cumprimento.
Sobre o espetáculo, Melo havia dito que perseguia a ?difícil simplicidade?. Já nessa entrada, pela forma como o elenco se relaciona com o público, pode-se perceber a presença de uma simplicidade que é fruto de muita depuração. Não se trata daquele olhar que, embora voltado diretamente para o público, o olho do ator não se comunica de verdade com o espectador. Não. O elenco liderado por Melo e dirigido pelo curitibano Márcio Abreu realmente parece ?ver? as pessoas às quais se dirige. O despojamento deles é fruto de trabalho tornado assim linguagem, sedimentada, e por isso se mantém ainda que o nervosismo de estréia esteja visível nos primeiros minutos.
Além do belíssimo tablado/palco, só cadeiras e um acordeão executado por Edith. Com tão pouco, o público riu e se comoveu. Bastou, por exemplo, tombar uma cadeira e ela virou trenó descendo a neve em alta velocidade na deliciosa história de libido adolescente do conto Brincadeira, narrado por Coelho. Cada caso levado à cena resulta num corte profundo, preciso e revelador do comportamento humano. Essa capacidade de observação é característica da literatura de Chekhov, porém o mérito do elenco está em trazer à tona cada significado, em nos fazer ver, sem qualquer efeito tecnológico, a luz de um trem que corta a estepe gelada com seu brilho e, sobretudo, o efeito que esse trem provoca na mente já perturbada de um homem dolorosamente solitário, protagonista de O caso do champagne.
As técnicas vão além da simples narrativa dos contadores de histórias. Basta ver como Melo cria, no seu corpo, as costas da mulher que um observador apaixonado descreve, por ele próprio interpretado, no conto Amor. Daqui a duzentos anos prova que bom teatro se faz com alquimia aparentemente simples: algo a dizer e sobretudo, muito trabalho para dominar o modo de dizer.
Delicadeza e depuração semelhantes estão presentes em Por Elise, peça da mostra paralela criada pela mesma companhia mineira que ano passado destacou-se com Coisas invisíveis. Desta vez as histórias escritas e dirigidas por Grace Passô, que também atua, têm como tema o cotidiano e giram em torno de alguns vizinhos, um lixeiro e um ?sacrificador? de animais domésticos. Por Elise começou a ser gestado dentro de um projeto do Grupo Galpão e sua evidente qualidade, ainda que a jovem companhia ainda tenha um longo aprendizado pela frente, também é fruto de cuidadoso trabalho.
Beth Néspoli é jornalista da Agência Estado.