Essa história tem, exatos, 275 anos. O Brasil só existia no litoral, reflexo do comodismo dos senhores d?além mar que vieram para empreender a espinhosa tarefa da ocupação da terra, tomando-a do gentio, ao passo que a imensidão dos campos interiores se abandonava ao constante nomadismo das nações silvícolas e a covil das bestas feras. No continente de Rio Grande de São Pedro, o Rio Grande do Sul de hoje, o cenário diferia porquanto na vasta pradaria se reproduziam e pastavam milhares de cabeças de gado.
Desde 1715, pelo que descobriram os historiadores, o continente de São Pedro era apenas uma esbranquiçada faixa litorânea de mais de cem léguas, pontilhada por lagoas e dunas que os fortes ventos faziam e desfaziam, já palmilhada pelos pioneiros de Laguna tangidos pelo instituto do utis possidetis (a terra é de quem a ocupa). Moysés Vellinho, em Capitania d?el-Rei (Editora Globo, RS, 1964), ao discorrer sobre aspectos polêmicos da formação rio-grandense, diz que índios missioneiros percorriam as extensas vacarias jesuíticas para defender os rebanhos, sob a vigilância dos padres, sempre atentos ao que lhes soasse como ?rumor de portugueses?.
Pois os tais lagunenses, que achavam essas terras ?as melhores de toda a América para se povoarem?, já haviam farejado as grandes vantagens econômicas do comércio de gado, em especial de cavalgaduras, ?que os levava à apropriação progressiva da costa, caminho natural dos tropeiros que partiam das campanhas do sul em demanda das feiras de Sorocaba e daí irradiavam para as Gerais, Rio de Janeiro, Goiás e Mato Grosso?.
Um ancestral dos andantes do pampa sulino, Silvestre Gonzalez, investido de suposta autoridade de administrador e fiscal, a julgar pelo sobrenome da parte do governo castelhano, no distante ano de 1705 anotou gigantesca tropeada com mil índios a cavalo tocando 400 mil reses xucras pela Vacaria dos Pinhais, situada nos chamados Campos de Cima, ou Tapes, onde os jesuítas haviam estabelecido as reduções guaraníticas.
O primeiro donatário de capitanias hereditárias, Martim Afonso de Souza, pelos idos de 1533 trouxe de Portugal as primeiras cabeças de gado. Em 1541, ao desembarcar em São Vicente, o terrível Alvar Nuñes Cabeça de Vaca trazia também cabeças de bovino ?cuernos largos? (chifres grandes), os primeiros da espécie a ingressar no Brasil. No lado espanhol, com a fundação de Assunção, em 1534, Hernandarias foi o primeiro a chegar com algum gado na matalotagem.
Todavia, nenhum desses visionários superou no aspecto da primazia o legítimo introdutor do gado vacum nas terras da América do Sul. A glória pertence ao missionário jesuíta Roque Gonzalez, que ao lançar os fundamentos das primeiras reduções nas margens do Uruguai, em 1626, disseminou entre os índios os primeiros bois e vacas trazidos da Europa. Padre Roque, sem dúvida, pode ser considerado o formador da pecuária sul-americana.
Não menos gratificante na faina do investigador da história foi descobrir que na base desse amplo sistema mercantilista estava a Colônia do Sacramento, rude vilarejo sobre o Rio da Prata, fundado em 1680, segundo Vellinho ?termo inicial dessas duras jornadas?, ou seja, do transporte das tropas até o Porto de Laguna e, daí, para a feira sorocabana.
As vacas de Gaete
Na bem documentada História do Rio Grande do Sul (Editora Globo, RS, 1970), Guilhermino César, nascido em Minas e radicado em Porto Alegre, diz que foram os irmãos Cipião e Vicente Góis que levaram para o Paraguai, em 1555, as primeiras sete vacas e um touro, logo conhecidas como ?as vacas de Gaete?, nome do peão que zelou pelos animais durante a viagem. Destarte, esse historiador acrescenta uma faceta a mais na prolífica teia que procura identificar a verdadeira matriz do incomensurável rebanho avistado dois séculos mais tarde.
Guilhermino descreveu os Campos de Vacaria como um longo espaço que avança na direção das missões jesuítas nas margens do Uruguai, fechado pelos lados meridional e oriental por uma fileira de serras e cordilheiras, pela grande corrente fluvial descendente, e do lado ocidental por extenso cordão de mato.
Somente no segundo decênio do século XVIII é que a região começou a ser percorrida por gente egressa de São Paulo ou Laguna, tropeiros empenhados em conduzir gado vacum, muar e cavalar requeridos para atender as necessidades das citadas povoações e, muito mais, para os recém-descobertos veios auríferos das Minas Gerais.
Desde os primórdios dos 1700 já se praticava o transporte de couro e gado vivo entre a Colônia do Sacramento e Piratininga, via Laguna, costeando o Atlântico, vadeando o Mampituba e mourejando com as serranias de Araranguá. Desse ponto, demandavam as tropas o planalto na direção dos campos Lages, Curitiba e Sorocaba, salienta Guilhermino, ?por trilhos sinuosos e alcantilados, quase impraticáveis?. Não havia, porém, outro caminho e 70 dias eram despendidos na penosa marcha.
Em 1727, o sargento-mor lagunense Francisco de Souza Faria recebeu a incumbência de abrir a estrada do Morro dos Conventos, ligando a foz do Rio Araranguá a São Joaquim e Lages, no planalto catarinense, daí seguindo pelos campos de Curitibanos e Curitiba até Sorocaba. Os comerciantes estabelecidos em Laguna levantaram-se contra a abertura da estrada, tendo em vista que sua maior fonte de lucros estava na iminência de desaparecer.
É nesse contexto que surge a figura, mais tarde lendária, de Cristóvão Pereira, o primeiro tropeiro digno do nome. Extraordinário sertanista e desbravador, conforme relatou o também historiador do Rio Grande do Sul, Wolfgang Hoffmann Harnisch, em livro publicado em 1941 (O Rio Grande do Sul A terra e o homem), cruzava e recruzava desde o pampa cisplatino até os mercados centrais do País, empurrando suas grandes tropas de bovinos, cavalos e muares.
Moysés Vellinho lembra que Cristóvão era português de nascimento, contrariando os que asseguraram por muitos anos que o aventureiro era nascido no Brasil. O monsenhor Luiz Castanho de Almeida (1904-1981), do Mosteiro de São Bento de Sorocaba, que historiou o tropeirismo sob o pseudônimo de Aluísio de Almeida, informa-nos que Cristóvão nasceu no povoado luso de Ponte de Lima, em 1680. Ao que Vellinho reponta: ?Cristóvão Pereira nasceu no mesmo ano em que se levantava defronte a Buenos Aires o baluarte português que seria o teatro inaugural de suas primeiras façanhas no ultramar?.
Contratador de couros
Com apenas 21 anos de idade, pela primeira vez Cristóvão entrou na Colônia do Sacramento, ele que estivera entre os fundadores do ponto avançado de Laguna. Seu ofício era o de contratador de couros, atividade designada pela Coroa portuguesa mercê da elevada extração social fruída por seus pais e familiares.
Vellinho salienta, baseado em Jaime Cortesão, que ?só uma pessoa favorecida pelo berço poderia obter concessão tão vantajosa, principalmente por se tratar de quem era pouco mais que um adolescente. Mas prova de que ele estava à altura do favor com que fora distinguido é que o negócio da courama e outros derivados da rês tomaria grande impulso sob seu comando?.
O encargo era rendoso, mas duro e violento, consistindo no ?assalto aos rebanhos que povoavam um território já então ocupado pelos espanhóis, exceção apenas do baluarte e seus contornos imediatos?. Cortesão, também anotou que a lide do contratador de couros obrigava-o a envolver-se em arreadas e guerrilhas e, nessas condições, inscreveu-se entre os agentes que mais contribuíram para afeiçoar o tipo primitivo do gaúcho e sua peculiar inserção na atividade econômica propiciada pela Colônia do Sacramento.
Perdida essa praça para o domínio espanhol, em 1705, Pereira viu-se impedido de prosseguir com o negócio do couro. Em 1710 está no Rio de Janeiro e aí obtém a função de contratador de tabacos, mas já em 1722 reaparece em Sacramento, negociando couros e campeando reses tresmalhadas. A essa altura a saga de Pereira entra em definitivo não só na história da formação do Rio Grande e do Paraná, mas como figura palmar da genuína odisséia campeira das tropas, um dos registros mais impressionantes da história colonial brasileira.
?O grande tropeiro, homem de jeito e autoridade, cumpriria à risca a missão que recebeu, e foi ainda ele, com seus conhecimentos topográficos, quem afinal veio a tornar praticável o caminho rasgado por Souza Faria?, escreveu Moysés Vellinho, lembrando as melhorias introduzidas por Cristóvão Pereira na tosca vereda demarcada pelo sargento-mor de Laguna: ?Lançando 300 pontes e um sem número de estivas sobre rios e pântanos, corrigiu os erros do traçado inicial?.
Chegar ao planalto, depois de percorrer as longas trilhas da Vacaria do Mar, por entre as lagoas do litoral de São Pedro do Rio Grande até chegar ao Mampituba, tornou-se empreitada menos arriscada, a ela se devendo o descortino do gênio aventureiro do precursor do ciclo que haveria de estender-se por aproximadamente 140 anos. O gaúcho cede a palavra ao colega paulista Alfredo Elis Júnior, a quem concede a palma de ter produzido a melhor descrição da bravura de Pereira: ?Talvez a estrada do Rio Grande a São Paulo tenha sido a rota de maior importância da história do Brasil, pois sem ela não teria havido o ciclo do ouro, não teria havido o do café e nem a unidade nacional teria sido levada a cabo?.
A obra consumiu a reserva financeira do sertanista crivando-o de dívidas. Era urgente restabelecer o crédito e o bom nome. Em 1731, partiu de Sacramento com enorme tropa de bois e cavalgaduras para vender na feira de Sorocaba, onde decerto auferiu pequena fortuna, à vista dos dez mil cruzados de impostos recolhidos aos cofres do império. À parte o ofício de tropeiro, Cristóvão foi proficiente observador da paisagem em que realizava sua faina. Num assentamento recolhido em Relatos sertanistas (Livraria Martins Editora, SP, 1953), narrou: ?Estando eu naqueles campos por várias vezes do dia vi pegar fogos, e a primeira me deu alguns cuidados, e toda a tropa, por entendermos seria gentio, mas mandando-se examinar se não achou sinal nenhum disso, e viemos a entender que nascia do grande número de cristais que há por aqueles campos e córregos, não só de várias cores, mas lapidados, e tão finos, que com a força do sol pegam fogo, ou duns cocos de diferentes tamanhos formados pela natureza, por fora duma fina pederneira, e por dentro de uma pinha de cristais já lapidados, que ao arrebentar com o sol faz o mesmo efeito?.
Defensor de Sacramento
Nos primeiros anos da década de trinta dos 1700, os espanhóis arranchados em Buenos Aires assaltam novamente a Colônia do Sacramento e o governador Antonio Pedro de Vasconcellos pede aos superiores paulistas que mandem em seu socorro ninguém menos que Cristóvão Pereira, cuja ?agilidade e préstimo com o muito conhecimento do País e do gentio, o que não haverá em nenhum dos oficiais pagos desta guarnição?, foram propagados em carta do governador de São Paulo, Conde de Sarzedas, ao rei de Portugal.
O tropeiro é nomeado coronel de ordenanças e põe-se em marcha na vanguarda de um regimento de milícias. Tendo em vista a necessidade ?de acudir sem delongas a praça sitiada?, comenta Vellinho que o explorador foi levado a retificar mais uma vez o traçado de Souza Faria, que infletia sobre o litoral catarinense, para cair em cheio nos campos de Vacaria, em rigorosa obediência à visão de estadista: ?Com essa providência heróica ele buscava não apenas encurtar distâncias, mas ainda combater ou incorporar em seu regimento os índios que fosse encontrando. Estava assim desbravado o caminho para os contingentes paulistas que mais tarde, por ocasião da invasão espanhola de 1763, tiveram que correr em defesa da raia meridional?.
A intrepidez de Cristóvão logo fez-se notar. Gomes Freire, governador do Rio de Janeiro e grande varão do reino, afirmou em carta ao Conde de Galveas em julho de 1736, dois anos depois das escaramuças do Prata: ?Cristóvão Pereira é homem de grande espírito e posto que paisano encontro em ele admiráveis disposições para lhe encarregar o governo da Fortaleza do Rio Grande, não só pela atividade que tem, mas pelo grande tato e amizade que conserva com os gentios minuanos?. E também a Silva Pais, fundador do Rio Grande, confirmará a conveniência de buscar conselho com o estrategista, ?por ser um homem prático e valoroso, com discurso claro e militar?, conforme se constata em documento referente à Colônia do Sacramento, estampado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.
Notável historiador do ciclo das tropas, do qual somente se teve notícia pela leitura dos escritos de Auguste de Saint-Hilaire sobre sua extensa peregrinação em terras brasileiras, o sorocabano Aluísio de Almeida, no belíssimo livro Vida e morte do tropeiro (Itatiaia, MG, 1993), escreveu: ?Enfim, em 1731 saiu Cristóvão Pereira da Colônia com uma tropa de 800 muares e cavalares, e com os dos sócios esse número atingiu a 3.000. Em setembro apenas com 3 homens fizera um reconhecimento. De volta, saiu de Araranguá com um piloto e 60 pessoas, enquanto os tropeiros ficavam nos campos do Rio Grande. Passou 13 meses construindo 300 pontes, melhorando os rumos de Faria mais para o oeste. Esta é a estrada da mata, nome que teve depois. Em seguida mandou tocar as tropas. Eram 130 tropeiros e peões, paulistas em grande parte e, certamente, platinos alguns. Em 1733 estavam em São Paulo?.
Estava inaugurado o ciclo econômico do tropeirismo entre Viamão e Sorocaba, caminho ponteado hoje pelas cidades que cresceram sobre velhíssimas invernadas: Vacaria, Lages, Rio Negro, Lapa, Ponta Grossa, Castro, Itararé, Itapetininga e Sorocaba, entre tantas outras. Somente por volta de 1870, com o surgimento das ferrovias, os tropeiros, a quem Aluísio com justiça intitula de ?industriais do transporte?, encerraram a gesta brasileira.
O grande pioneiro, Cristóvão Pereira, viu a luz pela última vez em 22 de novembro de 1755, há 250 anos, jazendo seus restos mortais na capela da Lapa, na vila do Rio Grande.
Ivan Schmidt é jornalista