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Criadora, criatura e o desejo em ‘Retrato de Uma Jovem em Chamas’

Desde o Festival de Cannes do ano passado, em que recebeu o prêmio de roteiro e a Palme Queer – para o melhor filme de temática LGBQ+ -, Retrato de Uma Jovem em Chamas tem sido um favorito de plateias defensoras da diversidade. No Brasil, abriu o Mix Brasil, em novembro. Concorreu ao Globo de Ouro e, muito provavelmente, estará entre os cinco indicados para disputar o Oscar de melhor filme internacional, no anúncio que a Academia de Hollywood faz nesta segunda-feira, 13 – 10h do Brasil. É o quarto filme de Céline Sciamma, que, a par de ser diretora, roteirista – autora -, é também ativista em defesa dos gêneros. Mulheres, trans, gays, na tela e fora delas, Céline tem sido incansável em defesa das minorias. Retrato é sobre uma pintora contratada para fazer o retrato de uma jovem que deixou o convento para substituir a irmã, que se matou, num casamento arranjado. Ela não quer se deixar pintar para o retrato que será ofertado ao futuro marido. Noémie Merlant faz a pintora, Marianne. Logo no começo do filme está desembarcando na costa da Bretanha, na França de 1770, portanto, pré-revolucionária. Héloïse é interpretada por Adèle Haenel.

Marianne finge estar ali por outro motivo. Aproxima-se de Héloïse sem revelar sua intenção. Observa-a o tempo todo e, depois, reproduz o que vê. Criadora, e criatura. Assim como a aproximação é furtiva, a relação também o será. Desejo oculto, repressão. O movimento de Marianne, como artista, será captar a interioridade – a alma? – de Héloïse para dar transcendência ao quadro. Como mulher, a questão é mais íntima. Liberar o fogo da paixão que a ambas consome. Existem referências até um tanto óbvias no processo, e não se pode negligenciar que se trata de um filme de época. Ecos de Emily Brontë, O Morro dos Ventos Uivantes, claro. E de Jane Campion, O Piano, que, só como curiosidade, vale lembrar que venceu a Palma de Ouro de 1993 (dividida com Adeus, Minha Concubina, de Chen Kaige). Jane permanece como a única mulher vencedora do prêmio maior de Cannes. Céline, só para esclarecer, também foi a primeira e até agora única vencedora da Palma gay.

São influências superficiais, mas interessantes porque ajudam a esclarecer um mal-entendido de que o filme está sendo vítima. Tem gente – críticos – que acham que o filme começa ruim e melhora um pouco. O primeiro quadro de Marianne é acadêmico e insatisfatório – para a mãe de Héloïse e a própria artista. Será uma confusão – metalinguística – entre o filme e o processo criativo em seu interior? Seja como for, Retrato avança para chegar ao seu verdadeiro objetivo. É sobre outra criadora, e outra criatura. Céline e Adèle são companheiras, na arte e na vida.

O filme é habilmente construído para refletir sobre a relação pessoal das duas, ou essa dimensão está somente nos olhos de quem vê, e sabe? Desde o começo, o mar é borrascoso, e metafórico – como aquele outro mar tempestuoso que Rey/Daisy Ridley tem de transpor, em Star Wars Episódio IX, para chegar próxima de seu amado, o conflitado Kylo Ren/Adam Driver. Água e fogo, os elementos. As chamas não são apenas as que consomem internamente as duas mulheres. Uma crítica possível a Retrato é que o filme, muito bem escrito, realizado e interpretado, tem o racionalismo da demonstração de um teorema, e nesse sentido faz lembrar Parasita, do sul-coreano Jong Boon-ho. Tudo leva ao desfecho, olha o spoiler, e a outro quadro, que revela uma evolução, ou não.

Héloïse, com certeza, evoluiu – como mulher? -, mas o que significa exatamente aquele olhar captado pelo pintor cabe a cada espectador decifrar, e decidir. Filmes estão virando teoremas, e isso não é nenhuma novidade. Na entrevista à reportagem, Bong Joon-ho admitiu que Pier Paolo Pasolini havia sido uma de suas referências.

O problema de Retrato é uma certa frieza que Céline só se permite subverter em duas cenas, a do coral e do ritual pagão das mulheres na praia. Pode ser um tanto de pudor. As cenas de sexo são discretas – Céline não quer expor sua mulher amada? Talvez seja isso. No Cahiers de outubro, em que a capa é Jean-Luc Godard – por Le Livre dImage/Imagem e Palavra -, o mais controverso autor da nouvelle vague discute muito as questões da linguagem e da língua. Isso o leva a defender a supremacia do cinema mudo – puro? – sobre o sonoro. Godard cita um filme de Ernst Lubitsch, que Otto Preminger refilmou – O Leque de Lady Windermere -, para uma afirmação ousada. Diz que o Lubitsch pode ser entendido sem o reforço de intertítulos, enquanto o Preminger seria incompreensível sem as legendas.

Mas o que Godard faz é um grande elogio a uma atriz mítica do período silencioso, Rose Hobart. Há 90 anos, ela foi a protagonista de Liliom, a versão de Frank Borzage. Criou-se o mito que um livro – Rose Pourquoi, de Jean-Paul Civeyrac – tenta decifrar. Qual era o segredo dessa mulher que faz dela, até hoje, uma atriz tão moderna? Godard lembra de uma sessão promovida pelo lendário Henri Langlois na Cinemateca Francesa. Na plateia, Eric Rohmer, François Truffaut e ele. Saíram apaixonados pela atriz. O que isso tem a ver com Retrato? Godard busca o que seria o equivalente de uma atriz contemporânea para tentar iluminar o mistério, e a permanência, de Rose Hobart. Compara-a a Adèle Haenel, mas com a ressalva de que ela é maior que seus filmes. Isso significa desconsiderar dois filmes de muito prestígio interpretados por Adèle – A Garota Desconhecida, dos irmãos Dardenne, e 120 Batimentos por Segundo, de Robin Campillo. Seria, de qualquer maneira, estranho ver um Godard elogiando filmes como esses, fundados no naturalismo. Mas o que ele afirma vale – você não precisa amar Retrato para sentir a entrega das atrizes. No plural – Adèle e Noémie são excepcionais. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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