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Criador de música universal, Gismonti será homenageado no Festival Villa-Lobos

Se um músico toca simplesmente aquilo que ele é, a história de Egberto Amin Gismonti pode explicar um pouco dos caminhos que suas ideias trilham desde que tudo começou na pequena Carmo, Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1947. Mistura de pai árabe libanês com mãe italiana, menino Egberto ficou logo cedo no meio de um fogo cruzado que, se não o enlouquecesse, lhe faria muito bem. “Meu filhinha precisa tocar música clássica”, dizia o pai, cheio de sotaque e boas intenções. “Gosto de clássica, mas onde está a serenata?”, era a mãe puxando o cabo de aço, cheia de carinho e memórias afetivas. A formação de uma personalidade que faria de Egberto Gismonti um continente se deu assim, na casa de um árabe e de uma italiana erguida em uma cidade fluminense com uma paróquia católica na praça principal. Afinal, que música sairia disso?

Aos 68 anos, 70 discos lançados, condecorações e prestígio pelo mundo, Egberto será o homenageado de um festival com sede no Rio de Janeiro há 53 anos e um nome a se carregar com cuidado. Ele vai abrir e fechar o Festival Villa-Lobos, dias 4 e 15 de novembro, com apresentações na Sala Cecilia Meireles. Na primeira noite, estará ao lado da cubana Camerata Romeo, da maestrina Zenaida Romeo, nomeada em seu site como “a primeira orquestra de cordas da América Latina formada só por mulheres”. São 17 instrumentistas capazes de tocar o repertório de Gismonti de cor, sem partituras, tamanho o furor pela obra do brasileiro na ilha castrista. No dia 15, ele volta à Cecilia Meireles para se apresentar com o Duo a Zero, dos violonistas Alexandre Gismonti e Jean Charnaux, além do também violonista Daniel Murray e da Orquestra Corações Futuristas, que já acompanharam Egberto em outros países.

Quando recebeu o convite para ser homenageado de um festival com o nome de Villa-Lobos, Egberto fez exigências. Não queria estar lá apenas por estar, para apenas lembrar de algo de seu disco Trem Caipira, de 1985, quando releu com grande liberdade a obra do maestro. “O que haviam me proposto não era ruim, mas também não era algo que eu desejava fazer dentro de um festival com esse nome. Eu sentia a necessidade de ter alguma relação com Villa-Lobos maior.” Além de trazer a Camerata Romeo, Egberto pediu ainda para “tirarem Villa-Lobos da toca”. Ou seja, fazer com que outras cidades pudessem assistir ao espetáculo. Mais um pedido aceito. São Paulo vai ver o concerto dia 10, no Sesc Pinheiros. Antes disso, dia 8, quem recebe o músico e a camerata é o Sesc Santos.

Há outros homenageados desta edição, inspirada por efemérides. Um dos grandes violonistas brasileiros, Dilermando Reis faria 100 anos se não tivesse partido em 1977. O compositor de Paquetá, Anacleto de Medeiros, faria 150 anos. E Moacir Santos, o grande, chegaria aos 90. Na primeira vez em que o festival ocupa lugares públicos do Rio (como Praça Mauá e Museu de Arte do Rio, o MAR) vai contabilizar 63 ações, entre shows, mostra de filmes, concertos, oficinas, baile de gafieira e mesas-redondas em endereços arejados como CCBB, Escola de Música Villa-Lobos, BNDES, Sala Mário Tavares (anexo do Teatro Municipal), Bar Semente e o Espaço Tom Jobim.

Egberto foi apresentado à Camerata Romeo pelo violonista e regente cubano Leo Brouwer. A experiência do brasileiro com as meninas vem de longe, com histórias memoráveis de encontros em Cuba e do êxtase de Egberto ao se deparar com a qualidade e a entrega das jovens. Seriam elas fruto da ideia de que o regime de Fidel Castro de fato produz grandes instrumentistas para o mundo? Seria caso isolado de uma formação que não toca música tradicional cubana? “Essa orquestra foge hoje de qualquer comparativo no sentido de doação, e olha que eu toco com orquestras do mundo todo. No espírito dessa camerata, existe a crença de que cada uma das meninas ali doou a vida à música que fazem”, diz Gismonti.

O brasileiro diz enxergar no som da Romeo a Cuba do passado e do presente, de uma realidade que possibilitou, como uma válvula de suas existências, a dedicação integral dos cubanos a algumas especialidades. “E temos de lembrar dos professores de instrumentos de cordas russos, que baixavam aos montes naquele país (durante os anos áureos do regime).” Egberto diz que essa política resultou em um número impressionante. Cuba, com seus 12 milhões de habitantes, tem mais orquestras do que o Brasil, que tem mais de 200 milhões de brasileiros. “Cuba é do tamanho do Estado do Rio de Janeiro. Como um país desse tamanho pode ter mais orquestras do que o Brasil?”

É apenas uma das perguntas que rondam Egberto. Uma outra, que ele não faz, pode servir de reflexão sempre que se passa pela experiência de ouvi-lo em discos ou concertos. Apesar de sua aura “erudita”, de sua classificação de “músico complexo”, Egberto tem um discurso claro e abrangente. Sua música chega e bate, faz parar e dançar, ganha a corrente sanguínea e chega ao coração em segundos. Em um de seus concertos recentes em Amarante, no Norte de Portugal, como atração do festival Mimo 2016, havia jovens saídos de Coimbra e Lisboa apenas para vê-lo. “Como é quando ele toca no seu país?”, perguntou ao repórter uma estudante portuguesa que balançava o corpo no tempo de um de seus temas, predisposta a ouvir sobre a condição de superstar de Gismonti em sua terra natal. Talvez ela se surpreendesse com uma resposta mais sincera.

Aos que não o conhecem para além de Palhaço, Loro, Baião Malandro, Frevo e Sanfona, Egberto fica, assim, apresentado como um “músico complexo”. E complexidade e música são dois termos quase que excludentes às recepções não iniciadas (simplesmente algo como 90% da audiência de um artista). Ao falar, suas referências viajam o mundo. Ele parece saber o que se passa no Japão ou nas Ilhas Canárias com a mesma desenvoltura de quando fala de sua Carmo. Não fala por exibicionismo, mas porque esteve lá, fisicamente ou pelos livros que devora insaciavelmente. E, então, se um músico toca nada mais além daquilo que ele é, pode-se esperar riqueza de discurso, mas não hermetismo. Não parece haver uma nota em seu piano que não esteja ali para ajudar a contar uma história.

É aqui que Egberto conta seu passado, o de filho de pai libanês com mãe italiana, para tentar entender a natureza de sua música. Algo que não é entendido como um popular pura e simplesmente nem como um erudito contaminado e complexo. Parece ficar no alto do muro em que teve de subir para ouvir o que vinha das serenatas da mãe e o que saía das salas de concerto do pai.

“Eu não faço questão da parte acadêmica da minha vida”, diz, ainda sobre o assunto. “Eu quero ouvir a reação à música que eu faço, não à que eu escrevo.” Outra de suas frases. Ele diz que seu alvo, mesmo nas audiências mais especializadas, é o órgão que pulsa sob o peito dos homens, não as análises cerebrais. “Se quiserem falar comigo sobre assuntos como o equilíbrio da massa sonora das orquestras, ok, isso me interessa e vou gostar. Mas eu sei que não interessa a mais ninguém, por isso não falo. O único interesse que eu tenho hoje, depois de 70 discos, é o de criar uma sensação a quem escuta a música que eu faço: a vida vale a pena.”

Caso raro de compositor detentor do poder de negociar seus próprios discos, um ato desbravador que começou no dia em que ele entrou na sala do presidente de sua gravadora e o convenceu de que ele, Egberto, venderia melhor seus discos no mercado do que a própria companhia, Gismonti se movimenta para fazer sua música chegar a mais pessoas. “A vida me proporcionou muitas coisas, e quem me produziu foram essas pessoas que me acompanham.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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