Considerações sobre o livro de Laurentino Gomes

Em 1822, último livro do jornalista e escritor Laurentino Gomes, há o relato de certa perplexidade com o Brasil em 500 e poucos anos ter mantido a integridade territorial. O livro é delicioso e mostra como já mostrara Paulo Setúbal em seus romances históricos que a cena brasileira se desenvolveu com raros gestos magnânimos ou heróicos. É um milagre! Mudanças por estas bandas só quando a coisa era insuportável. Nossa história é mix de trágico e hilário. Dom Pedro I, adolescente, estava com dor de barriga quando decretou a independência. Portugal não gostou do desarranjo. Até o Brasil queria o casamento meia boca com Portugal, o tal Reino Unido. E teve de consertar o gesto intempestivo com dívidas e garantindo privilégios a quem tinha, e o resto que danasse. O resto, no caso, o povo. Ninguém ligou porque a maioria era escrava. Escravos não tinham direitos. Esta a nossa fórmula social. Nunca houve real preocupação com o povo porque o Brasil foi criado sem povo. No começo era elite de um lado, aventureiros, truculentos e renegados; e, de outro, índios com seus hábitos e desinteresse em projetos europeus nos trópicos. No cânone de nossa primeira elite, índio devia ser caçado e trabalhar de graça. O índio não gostou da proposta e fugiu para o mato num processo que ainda hoje perdura nos confins da Amazônia. A elite viu trabalho e ganiu como Macunaíma: ‘Aí que preguiça!’. E foi buscar negros na África.

E se formou uma nação híbrida. De um lado minoria de senhores que não trabalhavam e ganhavam; e, de outro, maioria de escravos que trabalhavam, mas não ganhavam. No meio, os capatazes – ou capitães do mato – que levavam os seus caraminguás. Estes os fundamentos de nossa civilização tropical. O conceito de povo não estava no projeto. Não que isso não provocasse tensão e preocupação. O livro de Laurentino revela o temor latente de a multidão negra se enfezar e em vez de fugir para quilombos, empurrar a minoria branca para o meio do oceano até ficar apenas o mar azul e o céu azul. Olhando as estatísticas, é um milagre isto não ter acontecido.

Mas a elite não aprendeu. Foi empurrando com a barriga e ignorando o povo que se reproduzia. Afinal, o que o povo ia fazer além de atrapalhar? Apenas a elite estava no projeto civilizatório. As capitanias hereditárias e depois o mal ajambrado império brasileiro com sua corte fuleira, que em poucos anos teve mais condes e duques que Portugal em sua história milenar, são dois exemplos históricos. Povo entrou de intruso na festa e até hoje cria problemas para as elites. O sucedâneo de índios e escravos no ideário oligárquico é o Jeca Tatu, eternamente fumando cigarro de palha, bebendo pinga e vendo o tempo passar. E como o êxodo rural empurrou os jecas para o entorno das grandes cidades, alguma coisa mudou, mas não a fórmula social.

Quando a elite vê muitos Jecas juntos e com idéias de cidadania e distribuição de renda, entoa: ‘Vamos acabar com esta chacrinha!’. Ou na brilhante versão de Millôr Fernandes: ‘Let’s stop that little farm’. O diacho é que o tempo voa e as coisas mudam no mundo, e o mundo insiste em ditar modas que o Brasil tem de aceitar para não cair em desuso. Essa tal democracia que dá ao povo o direito de votar e escolher quem vai mandar no estabelecimento até hoje não foi muito bem digerida pela elite, tanto que no último plebiscito sobre forma de governo em 1993 a monarquia teve espantosos 6 milhões e 840 mil votos. Sem um duque para fazer campanha. O lema era: Vote no rei. E não tinha nenhum. Imagine se tivesse.

Mas ainda está no imaginário a vaga noção de que o segundo reinado estava tão bom! Dom Pedro II era magnânimo. Antônio Conselheiro achava que os males do Brasil começaram com a República. E que só a volta do Rei Dom Sebastião ia consertar as coisas erradas. Como Dom Sebastião não apareceu, a República foi indo, mandou Canudos para os ares com Antônio Conselheiro e seus terroristas monarquistas e tudo. Povo ignorante e besta, não percebeu que a elite mudou para continu,ar tudo do mesmo jeito.

Mas sejamos justos. Não que a elite não gosta de democracia, ela não gosta de povo votar em alguém que não é da elite. Quando o povo vota em alguém da elite, tudo bem. Mas de vez em quando o mal adestrado povo navega contra a maré, e para mostrar sua revolta vota num palhaço.

Então a elite quer cassar o palhaço. Uma palhaçada. Será medo de novo desarranjo, como o do Ipiranga? Este o pano de fundo do debate político no segundo turno das eleições em que se manipula ética como se ela existisse para se aplicar a um lado, já que a elite nunca levou a sério a hipótese de prestar contas em assuntos de ética, moral e honradez. Lei e ética para o povo. E povo é Jeca Tatu. Não precisa mais que fumo e pinga.

Uma ação moralizadora foi a criação do Conselho Nacional de Justiça para por o Judiciário no seu real lugar. Nunca a história deste País viu tantos desembargadores e juízes revoltados, porque alguém resolveu tratá-los como cidadãos com direitos -mas também com deveres e obrigações. O corregedor nacional de Justiça Gilson Dipp confessou que sabia de muitas coisas erradas no Judiciário. Mas se assustou com a extensão. Ainda hoje, nos labirintos dos tribunais, se ouve impropérios contra o CNJ. Prova que a elite ainda considera privilégios direitos inalienáveis e inarredáveis, ainda que eventualmente imorais.

Há uma espécie de consenso religioso desde a vinda do homem branco ao Brasil de que alguns têm privilégios e outros deveres. Esta a origem de mazelas como nepotismo, corrupção e pedofilia na igreja, porque é notório que parte da igreja se alinha com anseios populares, mas a banda larga não larga a banda poderosa. Voltemos ao livro de Laurentino. É interessante lê-lo para entender um pouco da linha evolutiva de um sistema que ainda produz desigualdades sociais que desembocam numa injusta distribuição de renda. E quando um arremedo de distribuição é feito com efeitos vistosos na cadeia econômica, em vez de aprender a lição e apresentar uma alternativa, o estabelecimento ou elite desqualifica seus autores num esforço esquizofrênico. O estabelecimento teve séculos para encurtar a distância entre os extremos sociais e não o fez por crueldade e convicção.

A coisa se repete em todos os setores da vida nacional. No século 20, sambistas que queriam ser gravados dividiam a autoria de suas composições com um branquelo qualquer. O povo, para a elite, ainda é preguiçoso, não gosta de trabalho, Jeca Tatu do asfalto, que leva fama de ingênuo e besta, quando, claro, não se enfeza e assalta todo mundo até ser preso ou morto. O certo é que, parodiando Millôr Fernandes, ‘the people broke their face’. Por essas e outras dá tédio chegar às bancas e ver as capas das principais revistas semanais com escândalos eleitorais em série de um lado – e de outro, nada. Este não é o debate sério. É de ocasião, travestido de moralizador. Para manter o pedestal e não derrubá-lo. Como não disse o pendurado na cruz, eles sabem o que fazem. E tudo continua na mesma.

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