Curitiba 321 anos

Conhece a cidade que engoliu o vampiro e o arquiteto?

Curitiba tem duas marcas fortes fora de suas fronteiras – o escritor Dalton Trevisan e o arquiteto Jaime Lerner. O primeiro revela em seus contos a província e seus pecados, seus desejos, suas traições, seus embates conjugais e carnais. Trevisan escreve, principalmente, sobre a Curitiba que sobreviveu até o começo dos anos 80. Lerner se empenhou em moldar uma cidade moderna, charmosa e que durante décadas serviu de referência ao mundo com suas soluções urbanísticas quase sempre simples e criativas. Embora estejam em campos distintos, literatura e arquitetura e urbanismo, os dois podem ser considerados antagônicos em suas relações com a cidade.

O primeiro já declarou no livro em Busca da Curitiba Perdida qual é a sua cidade: não é a Curitiba para inglês ver, provavelmente a de Lerner, mas a cidade em passinho floreado de tango que girava nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes. Esta Curitiba, em que chegavam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça, sim, já em 1979, Trevisan lamentava a perda embora viajasse na cidade perdida. Uma cidade que se perdia para o tempo e para os bárbaros do progresso e também para o arquiteto que construía uma nova mitologia para a cidade e para si – como o Vampiro de Curitiba, voluntariamente ou não, criou uma para si.

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Rua XV de Novembro em meados dos anos 1960.

Por algumas décadas, então, sobre a Curitiba de Dalton Trevisan nasceu outra – a da Rua das Flores, da Rua 24 horas, do Ligeirinho, das canaletas e das estações tubo, do Jardim Botânico, das ciclovias e dos parques. Uma Curitiba que virou grife e que projetou Lerner como homem público. Mas, passadas algumas décadas, esta cidade também foi soterrada pelo tempo, pelas modernices e principalmente por problemas que se acumularam sem que as soluções fossem buscadas. E, pior, as soluções que Lerner encontrou já não eram suficientes para atender a demanda crescente. E elas, as soluções do arquiteto, embora ainda sejam úteis, perderam a majestade que tiveram – e com esta perda, outra cidade também se foi.

No entanto se o tempo e o crescimento desordenado das metrópoles urbanas – mal que assola todas as metrópoles do planeta – se encarregaram de levar Curitiba a engolir as cidades do vampiro e do arquiteto, não se pode dizer que ambos deixaram de fazer parte dela, da nova cidade. E, embora antagônicos em seus amores pela cidade, ironicamente os dois se reencontram nas trilhas em que se busca hoje as Curitiba perdidas. A cidade hoje é de gente apressada e de carros entupindo as suas artérias. Curitiba hoje é assim. Mas não é só ela. As grandes cidades norte-americanas, europeias e asiáticas também são. E a África também está cheia de cidades enormes, cheias de pessoas e de problemas, com poucos encantos e mais desencantos. É a globalização agravada pela explosão demográfica e pelo fenômeno de urbanização que se acentuou gravemente nas últimas décadas.

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Praça Rui Barbosa na década de 1960.

No entanto, Curitiba ainda conserva os seus encantos – os velhos edifícios no centro da cidade, que remetem à Curitiba perdida sobre a qual escreveu Trevisan. O prédio do Hotel Metropol, aquele em que Sylvia Seraphim se hospedou nos anos 30, antes de voltar para o Rio de Janeiro e dar fim á própria vida, está em reforma – mas conserva os traços arquitetônicos de quase cem anos passados. O Hotel Johnscher foi restaurado como dezenas, talvez centenas de outros edifícios que fizeram parte da Curitiba perdida. Foi Lerner quem começou a saudável mania de dar vida nova aos prédios velhos, mantendo pelo menos por fora o visual centenário. Agora mesmo está sendo feita a restauração da velha Ferragens Irmãos Hauer, atrás da Catedral. Na realidade, está sendo construído um edifício com estrutura moderna que terá uma capa também nova que mantém viva a lembrança do velho prédio. A velha cidade vai desaparecendo, mas vai deixando para as novas gerações as pistas de sua história e de seu passado.

Pode parecer nada, mas é muito. É muito melhor andar pela cidade e ver estas marcas do passado, de usufruir os parques criados nos anos 70 ao final do século, que mergulhar na impessoalidade e na brutalidade arquitetônica que caracterizam as outras metrópoles do planeta. E, por mais paradoxal que seja, a metamorfose valoriza ainda mais a obra de ambos – Trevisan e Lerner. Especialmente no primeiro caso. A cada década que passa, não é nas fotografias que se vai buscar a alma perdida da cidade. Mas nos livros do escritor, onde palpitam e regurgitam os personagens de um tempo perdido. A cidade engoliu os dois – mas nunca se livrará de ambos. Porque eles mantém vivas as duas cidades que se perderam na metamorfose engendrada pelo tempo.

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Linhas de ônibus trafegando no eixo Leste-Oeste (Centenário-Campo Comprido) em 1980.

Mais fotos antigas de Curitiba podem ser conferidas no site www.curitibaantiga.com.

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