A fábula está conosco. E ela é o ritmo, que nos diferencia e nos joga para um fabuloso futuro. À Europa de Haendel, Vivaldi, Scarlatti e qualquer contemporâneo, resta repetir o passado, ensina-nos Alejo Carpentier em Concerto Barroco. Outro de seus romances, provavelmente sua obra-prima, Os Passos Perdidos, conta a história de um etnomusicólogo que chega à Amazônia direto de Nova York, encarregado de garimpar instrumentos indígenas para um museu de Manhattan. Ele sucumbe aos feitiços da floresta amazônica.

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Tudo isso me passava pela cabeça enquanto assistia, na noite de sábado, 17, no Auditório Ibirapuera, a Voos de Villa – Impressões Rápidas Sobre Todo o Brasil, encorpada suíte de 16 números que atualiza de modo impressionante a música do nosso maior compositor. A obra criada pelo maestro e pesquisador Gil Jardim, responsável pelos arranjos incrivelmente inclusivos e ao mesmo tempo fidelíssimos ao Villa, é daqueles momentos únicos na vida musical de um país como o nosso, que parece esquecer-se, a cada esquina, de sua história, cultura e arte.

Gil, hoje com 61 anos, vem dedicando sua vida a Villa-Lobos. Desde o livro O Estilo Antropofágico de Villa-Lobos e a gravação antológica Villa-Lobos em Paris. Há 18 anos titular da Orquestra de Câmara da USP, tem mostrado como realizar um trabalho diferenciado e sempre antenado com o mundo que nos rodeia. Assim, por exemplo, faz uma série de concertos no Instituto Tomie Ohtake há alguns anos (até concurso de composição realizou por lá). E esse Voo de Villa nasceu lá. Sem dúvida, essa é a aventura mais fascinante das tantas que Gil tem concretizado.

No palco, a direção de arte refinada de Anna Turra emoldura um espetáculo de elevadíssima qualidade musical, com 16 músicos notáveis. E eles nos levam para uma viagem de volta à floresta amazônica, tão frágil neste duro momento de desmate proposital. Nunca o uirapuru, habitante daquelas matas tão preciosas, pareceu tão atual; jamais os ruídos, ou melhor, as melodias maravilhosas do universo da floresta invadiram os ouvidos do público de modo tão impactante e atual, insisto.

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Esse é um espetáculo-manifesto. Manifesto em defesa da floresta. Manifesto em defesa da música de invenção. Manifesto que prova, a quem queira enxergar, que a música tem sim o poder de influir e contribuir para o debate das grandes questões do País. Parabéns a todos os envolvidos. A Gil Jardim, pela ideia inédita; à fabulosa Clarice Assad, tão fascinante cantando quanto tocando piano; e a outros músicos notáveis, como Toninho Carrasqueira na flauta e no piccolo, Neymar Dias, magnífico no contrabaixo e na viola caipira; e ao percussionista Ari Colares, pondo um pandeiro absolutamente justo na cantilena das Bachianas 5; e às demais cordas e sopros, igualmente perfeitos.

O momento culminante só poderia acontecer naquela sala: a abertura para a “floresta” do parque, ao fundo, iluminada, misturando-se ao canto dos índios e à música do Villa.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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