Os olhos de Dante Ozzetti foram longe. Atravessaram a barreira do sagrado, romperam a muralha da tradição, sobrepuseram a contemplação e voltaram ao ponto de partida, fazendo um percurso que poucos conseguem concluir sem cair nas armadilhas. Seria fácil construir um discurso amparado pelo folclorismo, faturar a captação de uma Lei Rouanet com o argumento da valorização da cultura brasileira e garantir uma temporada de shows didáticos, cheio de ritmos regionais catalogados pelo País. Mas não. Sem leis, Dante desbravou as terras e os povos do Norte a seu modo para entregar uma experiência musical fascinante.
Seu álbum Amazônia Órbita, em processo de finalização para ser lançado em agosto, faz uma abordagem delicada de dez ritmos locais raros, muitos completamente desconhecidos em outras regiões. Mas seu pulo do gato está justamente na forma como entram essas informações. A criação das melodias parte das inflexões rítmicas, dos desenhos que marcam as batidas. É sobre eles que serão erguidas as vozes das cordas, dos sopros, as linhas do contrabaixo, as interferências do piano. Se apenas trouxesse à luz achados como o lundu do Marajó, o samba de cacete, o lundu indígena ou o carimbó chorado, seu trabalho já seria reluzente. Mas Dante, com a produção de Du Moreira, fez mais.
Como um conto fantástico, as primeiras vozes nascem nas florestas e nos quintais do batuque. É nos fragmentos da divisão rítmica original dessas tradições que Dante busca inspiração para compor os cantos e os contracantos de fagote, clarinete, tuba e flauta. Assim, a função da melodia é também rítmica, o que permite um diálogo desses instrumentos com a percussão. Ou a simples substituição de um pelo outro.
Em uma segunda esfera, mais elevada, entram as cordas dos violinos, das violas e dos violoncelos. “Elas chegam para conversar com a coisa terrestre, para dialogar com o ‘fogo baixo'”, conta Dante. As programações eletrônicas potencializam as batidas orgânicas e fazem transbordar a tradição do ritmo marcado pelo Trio Manari por todo o disco. Ao final, é um álbum de compositor aberto ao novo, não de um mero observador retratista.
Dante jamais havia pisado na Região Norte do País antes de ter contato com cantora amapaense Patrícia Bastos. Acabou colaborando, em parceria com Joãozinho Gomes, com a canção Demônio de Batom, em ritmo de marabaixo (tradicional de Macapá), para o disco Eu Sou Caboca, que Patrícia lançou em 2010.
As viagens de Dante ao Amapá começaram a ficar frequentes, e uma apropriação de linguagens começou a se dar de forma natural. A sofisticação harmônica do compositor ganhava o alicerce poderoso de uma terra com graves que brotam do chão. O Estado mais negro da região tem ainda dois quilombos culturalmente fascinantes: o Mazagão e o Curiaú, cada um com as próprias batidas de marabaixo. É onde o Amapá se firma como cultura autônoma da vizinha Belém, no Pará. Por lá, não existe a mesma influência da América Central, que marca ritmos como o carimbó e as guitarradas.
Além de Patrícia, o encontro com o Trio Manari, o grupo das culturas nortistas mais respeitado no exterior, foi orientador para a pesquisa. Paraenses, eles ajudaram a traçar os ritmos que definiriam a variedade do disco.
“Apesar de ter nos ritmos algo fundamental, a proposta não é um álbum que faça um resgate ou um catálogo dos gêneros”, diz Dante.
Irmão e produtor de Ná Ozzetti, ele estabeleceu uma linguagem de extrema comunicação, mesmo atuando sobre um registro muitas vezes mais elaborado. Em 2000, venceu o 3º. Prêmio Visa de Música – Edição Compositores, recebendo o prêmio do júri e o da escolha popular. Como recompensa, assinou contrato com a Gravadora Eldorado para o lançamento de um CD, e, em 2001, lançou o álbum Ultrapássaro, nome também da música feita em parceria com Zé Miguel Wisnik.
Seu mergulho pelos rios do Norte já levam quase dois anos, desde que começou a pesquisa. O caminho que escolheu é original por divergir dos olhares mais comuns diante da grandiosidade amazônica. Ele mesmo reflete que sua pegada não é contemplativa, como a de Villa-Lobos, nem mitológica, como a de Waldemar Henrique ou de Marlui Miranda. Dante Ozzetti vai, muitas vezes, na contramão do respeito e da fidelidade religiosa com seu espetacular drible estético. Se o ritmo é intocável, até mesmo porque um simples deslocamento de acento pode fazer o marabaixo migrar de território e virar o maracatu pernambucano, a melodia é livre. Mas e quando a melodia surge das próprias células rítmicas que caracterizam o gênero? Dante desafia o sagrado o tempo todo, fazendo com que ele ganhe asas e saia em voos rasantes.
Sua visão orquestral do ritmo-que-vira-voz é libertadora. Afinal, na grade dos maestros, a tradição que a percussão sempre carrega nas costas tem um sabor de fundo decorativo e de afirmação cultural. Da forma como Dante faz, a história é outra. Ele não ergue bandeiras nem traz giz e lousa para dar aulas sobre a cultura que o Brasil pouco conhece. Sua relação com a música é honesta, sem segundas intenções. Ele, simplesmente, busca sua inspiração no ritmo sem prometer a ele o estrelato. O ouvinte pode identificá-lo, se interessar e passar a pesquisá-lo, mas não será Dante quem vai pedir. O que ele quer fazer, e faz, é simplesmente emocionar.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.