Tran Anh Hung é um cineasta franco-vietnamita que ganhou projeção internacional no Festival de Cannes de 1993 com um filme tão belo quanto misterioso e erótico – O Cheiro do Papaia Verde. O despertar dos sentidos pelos olhos de uma garota.
Papaia Verde é sempre um marco quando se fala na capacidade do cinema de conjugar o verbo comer, usando a gastronomia (e o paladar) para contar histórias de sexo.
Desde então, Tran Anh Hung tem feito poucos filmes – quatro, em 17 anos. Abordou a violência em Entre a Violência e o Crime (Cyclo), que lhe valeu o Leão de Ouro de Veneza em 1995, e em Fugindo do Inferno, homônimo do clássico de ação dos anos 1960, que fez em Los Angeles, com Josh Hartnett. Entre ambos fez As Luzes de Um Verão, na vertente de Papaia Verde. E assina agora Como na Canção dos Beatles – Norwegian Wood.
Sendo Tran um cineasta francófono, a tentação é dizer que ele quis fazer o seu Jules e Jim, pagando tributo ao clássico que François Truffaut adaptou do romance de Henri-Pierre Roché, pelo menos no começo. Uma mulher para dois. A história é contada por Toru, que evoca sua amizade com Kizuki e Naoko, nos anos 1960. São inseparáveis, e Naoko é a namorada de Kizuki. Ele se mata, Naoko some no mundo, mas retorna, anos mais tarde. Toru inicia com ela uma complicada relação. Há dificuldade para concretizar a união sexual, e Naoko também sofre de tuberculose, recolhendo-se a um sanatório nas montanhas. Toru conhece outra garota, Midori, e fica dividido. François Truffaut é substituído por Eric Rohmer, nos provérbios. ‘Quem tem duas casas – duas mulheres – perde sua razão.’
Em seus filmes anteriores, Tran Anh Hung tem alternado a preferência por personagens femininos e masculinos. Usa os primeiros para falar de sexo, os segundos, para abordar a violência. A novidade é que em Como na Canção dos Beatles, o sexo é visto pelo ângulo do homem. Toru tem um colega de quarto que trai constantemente a namorada e trata as mulheres como objetos. Toru, pelo contrário, não é só sensível. Enrola-se com as mulheres, a que não quer fazer sexo e a outra que quer, mas de quem ele guarda certa distância. A trajetória de Toru se faz no rumo de uma (adquirida) maturidade emocional. O que ele precisa é enterrar seus mortos para seguir em frente.
Como na Canção dos Beatles baseia-se em Norwegian Wood, romance que transformou o japonês Haruki Murakami num fenômeno editorial, não apenas em seu país, mas em todo o mundo. Considerado o livro mais romântico do autor, ele próprio diz que é uma obra à parte em sua produção, retratando as incertezas e ebulições do amor na juventude. A canção dos Beatles entra para situar a época, mas também porque seus versos dão conta dessa intensidade/dificuldade de amar. Com certeza, o título Norwegian Wood contribuiu para o culto ao livro (e a Murakami). A canção é de 1965, do álbum Rubber Soul. Foi composta por John Lennon, com a colaboração de Paul McCartney em algumas partes. Todo beatlemaníaco sabe que se inspira numa relação extraconjugal de Lennon, que já era casado (com Cynthia Lennon, na fase pré-Yoko Ono). De novo, voltamos a Truffaut, o romântico que desconfiava do romantismo. É um pouco a reação de Tran Anh Hung. Toru, dividido entre duas mulheres – e ambas querem ser a única -, realiza um longo caminho até a descoberta e aceitação do seu amor. É preciso uma certa distância para que um homem possa avaliar a extensão de seus sentimentos. No calor da hora, e do sexo, as coisas tendem a ficar confusas.
O filme dura pouco mais de duas horas. É visualmente muito bonito, narrado num ritmo lento e que integra as estações – outra possível referência a Eric Rohmer. Tudo muito rico e delicado, como se espera do diretor de O Cheiro do Papaia Verde, mas um tanto anticlimático, embora isso também se possa dizer do livro. O foco num personagem masculino meio apagado realça as mulheres. Naoko liga-se à morte, Midori é a esperança de vida do garoto, mas de alguma forma parece mais frágil que no livro. Cinema é uma coisa, literatura é outra. Para apreciar melhor o filme de Tran Anh Hung é melhor se desligar do livro e se concentrar na abordagem do cineasta, coerente com sua análise dos gêneros em filmes anteriores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.