Com ‘O Botão de Pérola’ Patricio Guzmán reafirma-se como grande cineasta

O chileno Patricio Guzmán dirigiu dois documentários já considerados clássicos – A Batalha do Chile e Nostalgia da Luz. Seu novo trabalho, O Botão de Pérola, não fica em nível inferior. Pelo contrário. Pode ser visto como continuação de um mesmo processo iniciado com os outros dois. Como os antecessores, procura cercar de significados a experiência histórica do seu país, em especial a trágica passagem dos chilenos pela ditadura de Augusto Pinochet.

No caso de O Botão de Pérola, Guzmán encanta o espectador primeiro pelo mistério da água, a substância de que o mundo é feito e que também nos forma. A água é tudo, para o planeta e para a estrutura do corpo humano. A onipresença do líquido vem estimulando a imaginação da humanidade e está presente nos mitos de origem. É um dos quatro elementos, nas tradições do Oriente e dos pré-socráticos gregos, ao lado do fogo, do ar e da terra.

A essa altura do filme, pensamos, e não sem certa razão, estarmos no domínio da informação filosófica e científica em alto nível, que de fato são paixões de Guzmán. Ele mesmo conta que, durante a infância e a juventude, alimentou um amor sem limites por Julio Verne, o escritor francês que deu forma à ficção científica como a conhecemos hoje. Fez um filme, na França, em homenagem a Verne. Ora, a ficção científica tira a sua força da especulação sobre a ciência verdadeira e suas possibilidades ainda não exploradas. É, em parte, o que faz Guzmán ao refletir sobre a água.

Logo o documentário desliza sobre o relacionamento de tribos indígenas praticamente extintas com a água. Era seu elemento natural, o meio de transporte de um lugar para outro, a fonte de alimento, a paisagem que conformava suas vidas. Essas tribos foram quase dizimadas pelos colonizadores e depois pela exploração de suas terras por especuladores. Uns são tão brutais quanto os outros.

Seus idiomas quase não são mais falados. Seu meio de subsistência – a água – encontra-se ameaçado pela invasão dos homens, pela poluição, pela ganância. Ninguém os escuta. São vozes silenciadas, como diz o narrador, enquanto conversa com alguns sobreviventes, alguns poucos que ainda conhecem o idioma.

Houve outras vozes silenciadas no Chile, durante a ditadura. Silenciadas pela violência política, pela tortura, pela morte, pelo sumiço dos corpos. E, nesse ponto, o documentário examina não apenas o crime político, mas o que significa para uma família não dispor sequer do corpo do ente querido para realizar seu luto. Uma necessidade tão fundamental que remonta à antiguidade e está presente nas obras de arte da antiga Grécia. Antígona arrisca-se para dar enterro ao irmão, insurgindo-se contra uma lei injusta.

Estabelece-se, nesse ponto, uma conexão funesta entre a água e a prática criminosa dos militares chilenos de dar sumiço aos corpos dos opositores assassinados jogando-os em alto-mar. Todas as ditaduras o fizeram, mas a argentina e a chilena ficaram conhecidas pelo uso contínuo da prática de atirar presos políticos, vivos ou mortos, ao mar. Como se o oceano, em sua vastidão, servisse para acobertar crimes contra a humanidade.

Há uma sensação estranha que toma conta do espectador (ao menos, deste espectador) ao longo dos filmes de Patricio Guzmán. Em primeiro lugar, a narração em off, feita pelo próprio realizador. Uma voz calma, serena, nem por isso despida de emoção. Nela existe algo de contido, como se Guzmán, aos poucos, fosse penetrando em território desconhecido, travessia delicada, para ser feita com elegância, cuidado e precisão.

Depois, há esse olhar que faz questão de colocar lado a lado o mistério do infinitamente grande ao não menor mistério do ínfimo. Ou do aparentemente ínfimo. Em Nostalgia da Luz, o Cosmos e fragmentos de ossos espalhados nas areias do deserto de Atacama.

Em Botão de Pérola, o Oceano e uma pequena peça de vestuário. Tudo ligado a tudo. Tudo conectado a tudo. Não como nos livros banais de autoajuda que vulgarizam a física quântica, mas na constatação de que de fato ocupamos lugar mínimo em relação ao Universo ou ao mar, mas que, cada homem em si, é infinito enquanto dura – para evocar o que o poeta dizia do amor. E um ser humano dura enquanto permanece a sua lembrança na memória dos outros. Sobrevive enquanto perdura a procura pelos restos que deixou.

Desse modo, Guzmán junta o cósmico ao histórico e, deste, extrai o político. Em particular, as formas ditatoriais de exercício do poder e, no caso, a chilena em particular, em seu desejo extremo de extinguir o opositor, tirando-lhe a vida em primeiro lugar, e, depois, tentando aniquilar seu corpo e seus restos.

Esses filmes se dão na duração, na persistência da memória, na virtual impossibilidade de o assassino sumir para sempre com todos os vestígios do crime. São filmes que se inscrevem na dimensão do político porque, encerrados os atos dos homens, passadas as tragédias da história, são outros homens que assumem o legado dos antecessores. Cabe despertar essas vozes do silêncio e fazer que falem. É a maneira de imortalizá-las. E, como nunca é tarde demais, fazer de tudo para impedir que o passado de tragédia se repita como farsa.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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