São Paulo – Não se pergunta mais por quê. A dúvida, agora, é quando: quando os Estados Unidos atacarão o Iraque. A guerra anunciada indica, na opinião do sociólogo Hélio Jaguaribe, que a doutrina Bush de ataques preventivos desenha um cenário em que “a lei internacional desaparece” e em que se abre um precedente perigoso. “Ao criar condições para agredir o Iraque, os Estados Unidos também estão abrindo a possibilidade de atacar quaisquer países”, afirma. Analisando a conjuntura a partir dos atentados terroristas de 11 de setembro do ano passado, o ministro Carlos Henrique Cardim, diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ligado ao Itamaraty, é mais cuidadoso. Ele, que coordena a publicação de uma coleção de 21 livros dedicados às relações internacionais, intitulada Clássicos Ipri (com a editora da Universidade de Brasília e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo), diz que vivemos “uma situação completamente nova”, fruto de “novas formas de agressão”, como foi o ataque aos alvos americanos. Esse novo cenário exigiria a formulação de novos conceitos, porque, acredita, “há um remodelamento do sistema de relações internacionais”. Na sua opinião, o mundo passa por uma transição, semelhante à que se seguiu ao fim da 2.ª Guerra Mundial, com o início da chamada Guerra Fria. Tanto Cardim quanto Jaguaribe são prefaciadores da coleção Clássicos Ipri, que traz reflexões sobre a guerra e a paz e também sobre a organização política entre as nações.Todos os livros ganharam apresentações novas, por autores brasileiros (exceção de A Grande Ilusão, de Norman Nagell, cujo prefácio é de autoria do argentino José Paradiso). Até agora, já foram lançados cinco livros – História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, Vinte Anos de Crise – 1919-1939, de E.H. Carr, As Conseqüências Econômicas da Paz, de Keynes, Paz e Guerra entre as Nações, de Raymond Aron, e A Sociedade Anárquica, de Hedley Bull. É possível comprar as obras individualmente (os preços dos títulos já lançados variam de R$ 27 a R$ 69) ou assinar a coleção inteira, por R$ 400 (informações pelo tel. 0800-123401 ou no endereço www.imprensaoficial.com.br). Boa parte da coleção traz textos nunca publicados na íntegra no Brasil. Há também novas seleções de clássicos de Maquiavel, Kant, Rousseau e Hegel. Gregos e europeus – A Guerra do Peloponeso, com a folclórica e literária Guerra de Tróia, marca a cultura ocidental. Se a disputa provocada pelo seqüestro de Helena deu origem a inúmeras metáforas e ironias (quem nunca foi acusado de tentar agradar a gregos e troianos?; quem nunca foi surpreendido com um presente de grego – como o cavalo que teria sido recebido pelos troianos, que trazia em seu ventre os soldados camuflados?), a Guerra do Peloponeso, travada entre 431 a.C. e 404 a.C. e opondo atenienses e espartanos, deu origem a uma interpretação da organização do equilíbrio de poder, realizada por Tucídides, um dos generais atenienses. Para Jaguaribe, não é possível utilizar Tucídides para pensar a guerra que se avizinharia. “Não ajuda muito; a Guerra do Peloponeso surge de uma disputa bipolar, de equilíbro, totalmente diferente do cenário que opõe EUA e Iraque.” Tucídides seria um modelo para entender a 1.ª Guerra Mundial. “Embora a história não se repita, ela gera situações de equivalência.” O livro de Hedley Bull, publicado originalmente em 1977, indica a complexidade do novo momento. O autor discute, entre outros assuntos, o que chama de “a revolta contra o Ocidente”, uma questão que está no centro do debate da política internacional, ainda que Bull tenha desenvolvido sua teoria pensando sobretudo na Europa, e não nos EUA. Essa revolta, iniciada após o fim da 2.ª Guerra, para Bull, teve fases distintas. Na apresentação, Williams Gonçalves as sintetiza, explicando cada uma delas: a luta pela igualdade soberana dos Estados, a revolução anticolonial, a luta em favor da igualdade racial e, finalmente, a busca pela liberação cultural: “Por essa expressão deve-se entender o processo pelo qual vários povos passam a rejeitar os valores e crenças disseminados pelos europeus, buscando recuperar e valorizar suas antigas tradições”, resume Gonçalves. “No que diz respeito a essa questão, Bull observa que, muito embora tal valorização das tradições culturais muitas vezes assuma a forma de fundamentalismo, no caso do Islã, e a de tradicionalismo, no caso dos hindus, ou de consciência étnica, no caso dos africanos, todas essas manifestações nada mais são do que o direito ocidental que todos têm de defender seu direito de expressão.” “Por mais que surjam novos problemas, esses livros apresentam paradigmas de comportamento das sociedades desde a Guerra do Peloponeso até a Guerra Fria”, afirma Cardim, sobre as obras da coleção. “Elas nos são necessárias nem tanto pelas respostas que dão, mas principalmente pelos problemas que colocam.” Esses livros, diz ele, são fundamentais para quem quer entender como funcionam as relações entre os países. “As relações internacionais não são só uma extensão da economia por outros meios”, brinca, parafraseando Claus Clausewitz, autor de Da Guerra (que também fará parte da coleção), para quem “a guerra é o prolongamento da política por outros meios” – em seu livro, Aron, claro, também passa pela citação, e chega a invertê-la: a política poderia ser vista como a extensão da guerra por outros meios. Novos estudos – O objetivo primeiro da coleção é fornecer textos para quem estuda as relações internacionais – dos mais variados pontos de vista: político, econômico, legal, histórico, etc. Nos anos 1990, o campo conheceu um grande crescimento no País – o mais recente sinal disso foi a criação, na Universidade de São Paulo, de um curso de graduação dedicado ao tema. Atualmente, há cerca de 20 mil estudantes de relações internacionais no Brasil, entre alunos de graduação e de pós-graduação (o primeiro curso de graduação do gênero nasceu na década de 1970, na UnB). Um dos sinais desse maior interesse brasileiro pelo mundo foi a criação, pela USP, com apoio da Fundação Fullbright e da Embaixada dos EUA, de um programa de intercâmbio, dirigido pela professora do Departamento de Ciência Política Maria Hermínia Tavares de Almeida, para formar especialistas em Estados Unidos. Formalmente criado há dois anos, funcionando há um, o programa procura financiar a vinda de professores americanos ao Brasil e a formação de brasileiros no país que vão estudar. Diga-se que este não é, aliás, o único programa de formação de especialistas em países em andamento no País, também carente em “argentinistas”, por exemplo, do mesmo modo que os norte-americandos formam “brasilianistas”, os ingleses, “arabistas”, e os franceses, conhecedores de detalhes da vida chinesa. “Nós temos uma relação muito intensa com os norte-americanos – política, econômica e cultural; conhecer bem nosso principal interlocutor é fundamental”, diz Maria Hermínia. Na sua opinião, faltam especialistas tanto sobre assuntos relacionados à política externa dos EUA quanto gente que conheça o país internamente. “Especialistas nos EUA fazem falta tanto do ponto de vista político quanto acadêmico.” Ainda de acordo com ela, atualmente, esse conhecimento está quase todo localizado no Itamaraty. “Temos de ter competência para assessorar não só o governo, mas também as empresas”, completa ela. Se o País se abriu econômica e culturalmente na última década, a insuficiência de gente pensando o lugar do Brasil no mundo ficou clara com a crise deflagrada com os atentados cometidos em 11 de setembro. Logo depois da queda do World Trade Center, não havia “americanista” ou “washingtonlogista” em número suficiente para analisar o que estava ocorrendo em profundidade.
Coleção traz as teorias da guerra e da paz
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