Cinemateca exibe filmes da casa em São Paulo

Críticos e teóricos como André Bazin – cujo livro O Que É o Cinema?, compilação de textos escritos há 60 anos, está saindo agora no País – sempre vincularam os filmes ao princípio da realidade. Faz parte do anedotário cinematográfico. O cinema nasceu no finalzinho de 1895 com aquela projeção que os irmãos Lumière fizeram de seu invento, o cinematógrafo, no Grand Café de Paris. Os primeiros filmes eram imagens – registros – arrancados à realidade. A chegada do trem à estação, a saída dos operários da fábrica. Atraído pelas imagens em movimento, um mágico, Georges Méliès, começou a sonhar com a utilização do cinematógrafo para ampliar o repertório de truques dos seus shows. Ele bateu à porta dos Lumière, que tentaram demovê-lo. Achavam que seu invento ‘não tinha futuro’. Méliès perseverou, fez Viagem à Lua em 1902 e o resto todo mundo sabe.

Há um cinema realista e outro que sonha, que cria mágicas, truques, efeitos. Ambos formaram a base do sistema industrial instituído em Hollywood e difundido pelo mundo. Hoje, até um grande da diversão – Michael Bay, da série Transformers – ironiza (a piada está logo no começo de A Era da Extinção, que estreia nesta quinta-feira, 17) que as sequências e remakes estão destruindo o cinema. Mas quando diz isso, Bay cita, como ‘clássico’, um grande filme que se integra numa série – Eldorado, de Howard Hawks, com John Wayne, o episódio intermediário entre Rio Bravo/Onde Começa o Inferno e Rio Lobo, e os três compõem variações sobre um mesmo tema. Os psicanalistas gostam de lembrar que o cinema é contemporâneo da interpretação dos sonhos do dr. Freud e até dizem que, no cinema, o espectador sonha acordado. A partir daí, só louco para duvidar de que a fantasia pode ser, ou é, uma ferramenta para se investigar a realidade.

Na Sala Cinemateca, começa nesta quinta-feira, 17, uma mostra de arquivos da casa, que vai exibir, só em versões película, grandes filmes que fazem parte da história do cinema. A programação começa com Band Wagon, Na Roda da Fortuna, de Vincente Minnelli, que tem a cena antológica em que Fred Astaire e Cyd Charisse caminham no Central Park, em Nova York, e de repente eles estão dançando e a câmera, inebriada, dança com eles. Era o filme preferido de Santiago, o mordomo da família Salles, e você, cinéfilo, se lembra das imagens no documentário que João Moreira Salles dedicou ao personagem. Minnelli, hoje, e toda a obra minnelliana é uma reflexão sobre personagens que vivem o sonho como se fosse realidade – artistas, visionários – e isso muitas vezes é fonte de tragédia para eles.

Nesta sexta-feira, 18, passa O Morro dos Ventos Uivantes, a adaptação de William Wyler, com Laurence Olivier e Merle Oberon. O romance de Emily Bronte sobre o amor louco entre Cathy e Heathcliff virou obra de referência para os surrealistas, mas Wyler era um realista que buscava, no plano sequência, o tempo real. André Bazin faz de muitos filmes de Wyler o emblema de suas teorias. E neste filme de 1939 você vai ver que o fotógrafo Greg Tolland já usava o foco total para realçar a profundidade de campo, invenção atribuída a Orson Welles em Cidadão Kane, também fotografado por Tolland, dois anos depois.

E a programação sobre a fantasia no cinema tem Luis Buñuel com seu filme manifesto, L’Age d’Or, a Idade de Ouro, que será exibido como complemento de A Lei do Desejo, um dos grandes filmes do começo da carreira de Pedro Almodóvar.

Tem também Federico Fellini, com seu falso documentário Roma e o filme é uma imensa fantasia, com cenas como o desfile de modas no Vaticano e a descoberta dos afrescos no metrô da cidade chamada de ‘eterna’. Como complemento de Roma, a Cinemateca propõe aquele documentário em que Fellini confessa que é um grande mentiroso, e que é belíssimo, muito melhor do que o de Ettore Scola sobre o grande Federico. A retrospectiva da Cinemateca tem muita coisa mais, mas só esses filmes já bastam para atiçar seu interesse nos primeiros dias. Grandes filmes – para se sonhar acordado e refletir sobre o mistério desse cinema que todo mundo quer enquadrar, dizendo que é isso ou aquilo, mas, na verdade, está sempre nos surpreendendo pela diversidade de seus grandes artistas.

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