Nos últimos anos, sua saúde tinha se deteriorado bastante, mas Walter Hugo Khouri ainda tinha planos de voltar aos sets de filmagem. Dois projetos o arrebatavam. Um chamava-se Luz, o outro, Fuoco, assim mesmo, em italiano. Khouri queria reatar com as próprias origens italianas, ele que também era descendente de libaneses, contando essas histórias sobre o fogo interior que sempre consumiu suas personagens, sobre a busca da luz. Os dois filmes estão agora condenados a não sair do papel.
O ma is paulistano dos cineastas – só o Luiz Sérgio Person de São Paulo S.A. poderia disputar o posto com ele – morreu na madrugada de ontem em sua casa na região central de São Paulo. Tinha 74 anos. Por volta das 5 horas, Khouri acordou e disse que queria ir para a sala. Amparado pela mulher, Nadir, avançou pelo corredor, mas não chegou à poltrona preferida. Caiu de joelhos, vítima de um ataque do coração. O corpo foi velado na Cinemateca Brasileira, no antigo Matadouro (Largo Senador Raul Cardoso, 207). O enterro está marcado para hoje, às 10 horas, no Cemitério São Paulo.A morte anunciada de Khouri reabre um debate que se faz necessário, sobre a importância desse autor tão vilipendiado pela geração do Cinema Novo. Khouri nasceu em São Paulo, em 1929. Tinha 24 anos e ainda cursava a Faculdade de Filosofia, quando começou a trabalhar na antiga TV Record e a escrever, no Suplemento Literário do Estado, sobre diretores como Ingmar Bergman, Josef Von Sternberg e Fritz Lang. Logo em seguida participou da experiência da Vera Cruz, ajudando a preparar a produção de O Cangaceiro, de Lima Barreto. Realizou seu primeiro filme em 1952-53, mas hoje restam apenas fragmentos de O Gigante de Pedra. Em 1957, com Estranho Encontro, ocorre o verdadeiro início de sua carreira, encerrada com Paixão Perdida, em 1998.
Quando Khouri começou a filmar, Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Roberto Santos, influenciados pelo neo-realismo, estavam lançando os fundamentos do Cinema Novo, com obras como Rua sem Sol, Rio 40 Graus e O Grande Momento. E aí vinha aquele intelectual paulistano com seus filmes bergmanianos. Khouri foi chamado de alienado. A acusação o perseguiu durante boa parte de sua carreira.
Os primeiros filmes revelam, realmente, a influência de Bergman. Na Garganta do Diabo, de 1959, possui seqüências inteiras que parecem saídas de Noites de Circo, o clássico bergmaniano do começo dos anos 50. E, então, em 1964, Khouri deu a grande guinada. Fez Noite Vazia, assimilando nova influência, a de Michelangelo Antonioni. O filme com Norma Bengell e Odete Lara revelou o amadurecimento do diretor, que dominava as artes do roteiro e da realização, superando os erros de seu filme anterior, A Ilha, de 1962, que foi, mesmo assim um dos maiores êxitos de sua filmografia de 26 títulos.
Khouri traçava um retrato da solidão urbana por meio do envolvimento de duas prostitutas com os personagens de Gabriele Tinti e Mario Benvenuti. Nas entrelinhas, o filme expõe o vazio existencial e a miséria moral de uma burguesia tão endinheirada quanto alienada. Apesar da beleza do filme, o diretor continuou sendo criticado, pelo que muitos intelectuais de esquerda, ligados ao Cinema Novo, consideravam a alienação do próprio cineasta face às questões políticas que sacudiam o País.
No ano seguinte, com Corpo Ardente, Khouri realiza seu filme mais pessoal e autoral. Ainda existe uma influência de Antonioni, mas a história da paulistana, interpretada por Barbara Laage, que sobe a serra e termina se identificando com um cavalo – que representa o instinto animal e a vitalidade que ela, no fundo, reprime -, marca um novo acontecimento em sua carreira. A partir daí e definitivamente, danem-se os cinema-novistas, Khouri é um dos grandes do cinema brasileiro.