Cineasta retrata Cuba em ‘Retorno a Ítaca’

Há um punhado de grandes filmes entre os 345 que compõem a programação da Mostra deste ano – Casa Grande, de Fellipe Barbosa, que, embora de estreia, não foi votado pelo público para concorrer na competição de novos diretores; Jauja, de Lisandro Alonso; Los Angeles por Ela Mesma, de Thom Anderson – o maior filme(vídeo) ensaísta da atualidade, segundo a respeitável revista Cinemascope, e ele está na cidade, integrando o júri que vai escolher a melhor ficção -; O Segredo das Águas, de Naomi Kawase; Jia Zhangke – O Homem de Fenyang, de Walter Salles; e, claro, Retorno a Ítaca, de Laurent Cantet.

Vencedor da Palma de Ouro por Entre les Murs/Entre os Muros da Escola, Cantet volta com outra ficção exemplar. Se no outro filme concentrou o mundo – e o cinema – dentro de uma sala de aula, Cantet agora faz o mesmo filmando um terraço em Havana. A ilha – o mundo, o cinema – cabem ali dentro. Cantet fez o filme mais crítico e visceralmente amoroso dessa Mostra. Retorno a Ítaca integrou a seleção de Venice Days, no recente Festival de Veneza. Foi premiado. Estreia em 3 de dezembro na França.

Retorno a Ítaca começou a nascer há dois anos, quando Cantet foi chamado para integrar o colegiado que realizou Sete Dias em Havana. O diretor, que está em São Paulo, conta – o escritor Leonardo Padura Fuentes participava do projeto, encarregado de dar unidade ao filme em episódios. Cantet já o conhecia – e admirava – por seus livros. Chegou a pensar em adaptar um texto de Padura – História de Mi Vida, sobre um exilado que regressa à ilha. “Mas o texto era muito rico, cheio de possibilidades e eu senti que o estava empobrecendo. Terminei contando outra história (La Fuente) e desenvolvi com Leonardo o roteiro para o longa.”

Padura tem sido crítico do regime cubano, mas sempre se recusou a deixar a ilha. No filme, um exilado – na Espanha – volta a Havana e reencontra amigos que não vê há 15 anos. Lembram o entusiasmo da juventude, refletem sobre os (des)caminhos que trilharam. Afloram conflitos, ressentimentos. Impossível não pensar em Nós Que nos Amávamos tanto, de Ettore Scola. Nós que amávamos a revolução. Como e quando ela foi traída? A utopia socialista, que ia levar ao comunismo, virou um Estado policialesco. O pintor parou de pintar, o escritor, de escrever. Passaram fome, e agora acertam velhas contas.

Scola – e não apenas C’Eravamo tanti Amati. O italiano tem outro filme chamado O Terraço e, em A Família, tudo, ou quase tudo, se passa à mesa. Há aqui um jantar. Até que ponto Scola foi uma referência? “Total. Não foi uma coisa planejada. Não dissemos, Leonardo (Padura) e eu, ‘Vamos fazer o nosso Ettore Scola’. Mas nossas reminiscências de cinéfilos, e o tipo de filme que estávamos fazendo, nos levaram a ele. Por garantia, não revi nenhum de seus filmes. É um dos prazeres de ter terminado Retorno a Ítaca. Posso rever Scola” – e Cantet sorri. Por que Cuba? “Porque a revolução de Fidel (Castro) foi mitificada no imaginário da esquerda. Isso ocorreu ainda mais no Brasil que na França. Cuba virou e permanece uma ilha de resistência num mundo globalizado. Os velhos esquerdistas fazem suas (auto)críticas, mas é a terra deles.”

Os jovens, mais impacientes, querem ir embora – “Mas isso ocorre em toda parte”, observa o exilado na Espanha. O mundo virou um grande mercado e, se os velhos mais ou menos se conformam, os jovens querem consumir. Surgem as acusações – o filho de um é ladrão, outro deve ter conta no exterior. A frase da velha mãe, que preparou o jantar, cala fundo – “Vocês são amigos há mais de 40 anos. Não destruam isso agora. A amizade é o bem mais valoroso.” Embora a câmera não desça à rua, Cantet fez questão de filmar em Havana, com atores cubanos. “Precisava da ambiência, da musicalidade da rua. Seriam 20 diárias, na verdade, 20 noturnas, mas houve uma tempestade subtropical, choveu durante três noites e tivemos de fazer o filme em 17.”

O elenco é magnífico, incluindo Jorge Perrugoría, que, além de atuar, é autor do quadro que é um elemento importante na (r)evolução da trama. “Tenho uma assistente cubana, casada com um francês, que me ajudou a escolher os atores”, conta Cantet. L’Emploi du Temps/O Emprego do Tempo, Vers le Sud, Entre os Muros da Escola. O tempo é sempre importante em seu cinema, como as diferenças culturais, o choque Norte/Sul (menos em Foxfire – Confissões de Uma Gangue de Garotas, seu filme em língua inglesa, que fez no Canadá). Atraído por personagens, Cantet filma para tentar entender o mundo. Retorno a Ítaca estreia em janeiro no Brasil.

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