A Viagem Extraordinária de Celeste García tem até nave espacial. Mas o cerne da comédia/ficção científica cubana, de Arturo Infante, é também uma interessante metáfora sobre a atual situação política na ilha caribenha.
Celeste (Maria Isabel Díaz) é uma professora dedicada aos seus alunos. Nas primeiras cenas é vista num planetário falando a eles sobre os mistérios do universo. Entre esses mistérios, aquele que sempre parece o mais fantástico aos iniciantes – o de que as estrelas que vemos no firmamento podem estar extintas há milênios. Por causa da longa distância percorrida, apenas sua luz ainda chega até nós e cria a ilusão de que as vemos. Ao mirarmos o Cosmos, olhamos para o passado.
Bom, a Astronomia tem mesmo algo de desestabilizador. E, por isso, Celeste não se espanta tanto quando um comunicado oficial informa os habitantes que alienígenas convidaram os cubanos a visitar sua terra e que os voluntários poderiam inscrever-se para esta viagem, provavelmente sem volta. Aos 60 anos, viúva e desiludida em sua vida pessoal, Celeste não hesita em se inscrever para a aventura.
O filme tem obviamente essa primeira camada. É uma comédia divertida, com o senso de humor próprio dos cubanos. A atriz Maria Isabel Díaz mostra carisma e prende os olhos do espectador desde que entra em cena. Foi, aliás, o que falou no debate o ator Flávio Bauraqui, que se disse emocionado com o desempenho da colega caribenha (hoje radicada na Espanha). Deve-se também dizer que, além da graça, também os efeitos especiais, que incluem a tal nave espacial, são bastante convincentes. O filme é uma coprodução Cuba-Alemanha.
Mas à par da graça e do charme da aventura, há também o indisfarçável gume crítico. O cinema cubano, aliás, tem toda uma tradição de primeira linha de sátiras sociais, que vão desde os tempos heroicos da revolução com A Morte de um Burocrata, de Tomás Gutiérrez Alea, aos trabalhos de Juan Carlos Tabío, com Plaff e Lista de Espera. A lista poderia ser enorme. As mazelas cubanas, dessa forma, entram na corrente sangUínea do cinema e de forma orgânica. Perguntado sobre isso, Arturo Infante confirma que é a essa tradição que se filia.
Desse modo, impossível não ver no filme o comentário sobre o desejo de boa parte da população de deixar a Ilha, mesmo que seja numa viagem temerária. Numa balsa precária ou numa nave espacial rumo a um planeta em que existem galinhas gigantes e ameaçadoras. Tudo vale em busca de algo melhor quando a sociedade em que se vive não parece oferecer perspectivas melhores de vida. Há também a graça (triste) da organizadora da incursão, autoritária e zelosa, atormentando os viajantes com seu rígido comando militar. “Em Cuba você dá um cargo a alguém e já cria um pequeno ditador, seja um pequeno burocrata ou uma faxineira que lava o chão”, comentam.
Por outro lado, há o humor e o fundo de esperança que acompanha a história. Porque, na expressão artística cubana, vemos sempre esses impulsos contraditórios: o desejo de sair e o lamento por fazê-lo. Ir embora porque as condições são ruins e não parecem melhorar, tanto no âmbito político como no econômico. Lamento, porque se ama o país que se quer deixar. O rastro de esperança é uma dica de sabedoria popular, mas que sempre funciona: às vezes, a grande viagem (no sentido de mudança) está disponível ao nosso lado e não a percebemos.
Curtas
As Constituintes de 88, de Gregory Baltaz. Documentário sobre as mulheres que participaram da Assembleia Constituinte de 1988. Bom momento para lembrar um tempo em que se procurava construir um país, após o fim de uma ditadura de 21 anos.
Livro e Meio, de Giu Nishiyama e Pedro Nishi. Interessante e visualmente muito bela animação, sobre um leitor que se deixa levar pelo livro que lê e ingressa em uma aventura. O leitor, ou leitora, lê-se a si mesmo(a).
Primeiro Ato, de Matheus Parizi. O curta promete mais do cumpre com sua história de dois estudantes de teatro, que preferem descer do palco para as ruas quando a cultura é ameaçada. Essa colagem do imaginário com o real é sempre problemática e mereceria ser mais bem estruturada.
Além da Jornada, de Gabriel Silveira e Victor Furtado. Achei bastante confusa a dramaturgia deste filme que, visualmente, é bem criativo. O funcionário de uma agência de turismo presta um tipo de serviço diferente ao seu patrão. A referência de fundo é a precarização crescente do trabalho, mas também não parece ser articular em linguagem cinematográfica.