De repente, você se flagra compungido com a angústia de um matador sanguinário, com mais de 39 condenações; identifica-se com um traficante mulherengo e fanfarrão, ao mesmo tempo em que se enfurece com os policiais acionados para “restabelecer a ordem” numa rebelião, que acaba com 111 cadáveres – todos presidiários.
Esta é a estranha sensação que se tem ao ver Carandiru, oitavo longa-metragem de Hector Babenco, que estréia nos cinemas brasileiros na próxima sexta. O filme mostra o violento cotidiano do então maior presídio da América Latina à época do massacre, ocorrido em 2 de outubro de 1992. O complexo penitenciário, que chegou a abrigar 7.500 presos, foi desativado e implodido no final do ano passado.
“A identificação com os criminosos acontece porque a seqüência do massacre é exibida no final do filme, quando esses perseguidos, humilhados e mortos têm nomes e família, e você conhece a história de cada um deles. Se fosse no início, com a PM invadindo o presídio e atirando em criminosos sem rosto, ninguém iria se abalar”, arrisca o cancerologista Dráuzio Varella, autor do best-seller Estação Carandiru, embrião do longa de Babenco.
Mas assim o filme não glamouriza o cotidiano na cadeia, e os detentos não ficam embalados para presente para a classe média politicamente correta? Com a palavra, o co-produtor Fabiano Gullane: “O Hector sempre teve essa preocupação, de não glamourizar os presos. Mas o filme é sobre um ponto de vista. Como diz o Dráuzio no livro, só os policiais, Deus e os presos podem contar o que de fato aconteceu no Massacre do Carandiru. E ele, como nós, só ouviu os presos. Por isso acho que a palavra certa seria `humanizar'”.
De fato, toda a história é escorada na visão do próprio Dráuzio Varella, que durante doze anos promoveu um programa de combate à Aids na Casa de Detenção de São Paulo, e para quem todos os presos (incluindo os abomináveis estupradores) eram apenas pacientes – visão reproduzida com perfeição na tela pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos, que faz o Médico. “Não me cabia nem cabe julgar aqueles homens. Para isso existe o Estado. Eu estava lá para tentar controlar uma ameaça de epidemia”, conta Varella. Mas ele refuta a “nobreza” do gesto: “Não fiz nada por altruísmo, escolhi trabalhar lá porque achei aquele universo fascinante, e encontrei uma forma de me aproximar e exercer a minha medicina”.
Especulações sociológicas à parte, Carandiru nos joga na cara uma realidade que fazemos de tudo para ignorar. E, sempre do ponto de vista dos encarcerados, vai desmontando uma série de estereótipos. Assim, nós “aqui fora” ficamos sabendo que na cadeia as leis funcionam de verdade, e que palavra e honra valem muito. Quem desobedece esse código é severamente punido. “Eu sou teu parceiro, te amo, mas se você roubar o meu isqueiro eu arranco a tua cabeça”, ilustra o ator Milhem Cortaz, que tem uma atuação brilhante como o bandidão Peixeira. E quem faz as leis e comanda esta comunidade são os próprios presidiários, como transparece numa frase do diretor da prisão, interpretado por Antonio Grassi: “Isso aqui só não explodiu ainda porque eles não quiseram”.
Cabe um reparo no entanto à benevolência como é retratado esse mesmo diretor. Na seqüência que antecede ao massacre, ao megafone, ele educadamente orienta os prisioneiros a voltar para as celas e largar as armas – no que é prontamente obedecido. Em seguida, abrem-se faixas pedindo paz e justiça, e mesmo assim a tropa de choque invade a prisão e promove o massacre, que termina num rio de sangue. Mas há uma omissão pior: nem no livro, nem no filme, aparece o nome do então governador Luiz Antônio Fleury Filho, que ordenou a invasão da Casa de Detenção pela tropa de choque, e é o responsável em última instância pela tragédia.
No fundo, entre mortos e feridos, a história de Carandiru pode ser resumida na resposta que o experiente Seo Chico, personagem de Milton Gonçalves, dá ao Médico, quando este lhe pergunta por que foi condenado: “O doutor quer ouvir mais uma mentira? Aqui dentro ninguém é culpado… O senhor ainda não percebeu isso?”. Culpados somos nós todos.
Elenco brilha em
CarandiruUma boa história, roteiro bem amarrado, boa direção de arte, e a ousadia de filmar numa penitenciária ainda em funcionamento – parte das locações foi feita no Pavilhão 2, desativado, porém com o restante do complexo ocupado. Mas o ponto alto do filme é mesmo o elenco. O Peixeira de Milhem Cortaz à primeira vista se assemelha ao estereótipo do facínora trancafiado. Violento, agressivo, frio. Sem mulher nem família, perambula pela cadeia nos dias de visita, e carrega no corpo todos os signos das atrocidades que cometeu. Mas ele fraqueja quando é instigado a dar o golpe de misericórdia no detento Zico, executado por ter assassinado um amigo de infância na cela. Nesse momento Peixeira tem uma crise de consciência, e acaba se convertendo a uma igreja evangélica.
O próprio Zico ganha vida com maestria, na pele de Wagner Moura (revelado em Deus é Brasileiro). Choca a decadência do personagem, que começa como um traficante simpático e companheiro, e, alucinado pelo crack, termina derramando uma panela de água fervente no amigo Deusdete – assinando sua sentença de morte.
Outro que está magnífico é Lázaro Ramos, que faz o ladrãozinho viciado Ezequiel. É gritante o contraste com o imponente Madame Satã, do filme homônimo de Karim Aïnouz. Em Carandiru Lázaro é um garoto frágil, assustado, que prostitui a própria irmã para pagar dívida de crack.
Desconhecido do grande público, Ailton Graça arrebenta como o traficante Majestade, malandro de carteirinha, com suas duas mulheres. É dele uma das melhores tiradas do filme, quando as duas exigem que ele escolha uma delas: “Assim vocês partem o meu coração”, emenda.
A sofisticada Maria Luisa Mendonça se transforma numa suburbana barraqueira, que larga o namorado e a família para disputar Majestade com a mulata Rosirene (Aída Lerner).
E o que falar de Rodrigo Santoro, que abdicou da imagem de galã para interpretar o siliconado travesti Lady Di? O garboso ator vira mesmo uma “lady”, delicada mas sem a menor afetação. Ela vive um belo e inusitado romance com o “filósofo” Sem Chance (Gero Camilo), que evolui para um casamento.
A lista é grande, mas o Nego Preto de Ivan de Almeida também está sublime. Condenado por assalto e homicídio, mandachuva da cadeia, juiz de todos os conflitos e chefe-de-cozinha, Nego Preto dá a última palavra sobre quem vive e quem morre no Carandiru. E ao mesmo tempo é um pai de família extremamente dedicado e amoroso.
Destoando mesmo, além do diretor “bonzinho” de Antonio Grassi, só o Deusdete de Caio Blat. Ainda que faça um criminoso “laranja”, preso depois de matar os estupradores da irmã, Caio parece muito meigo para um duplo homicida. Mas nada que comprometa o resultado final.
