Em 1995, o repórter integrou o grupo de cineastas e estudiosos de cinema que a Fundação Japão levou a Tóquio, no quadro do festival internacional de cinema da capital japonesa. Foram agendados encontros com cineastas. Diante de Eizo Sugawa, Carlos Reichenbach, que também estava no grupo, quebrou o protocolo e abraçou-se ao grande diretor japonês, que ficou atônito diante de tanta efusão. Nagisa Oshima foi glacial. Vestindo um quimono, que talvez fosse masculino e portando uma enorme bolsa, passeou pelo salão, respondendo às tentativas de aproximação com distantes inclinações de cabeça. Há 20 anos. Oshima, que, com todo respeito, parecia uma senhora, estava antecipando a discussão sobre gêneros, ou ela já estava em curso?
Quando Oshima morreu, em janeiro de 2013, os autores de obituários lembraram que ele integrou a nouvelle vague japonesa e, em meados dos anos 1970, com dois filmes sucessivos, O Império dos Sentidos e O Império da Paixão. Até então, o sexo explícito pertencia ao território da pornografia. Oshima o integra à dramaturgia. O filme (o primeiro) provocou escândalo no Festival de Cannes. Um homem, uma mulher. E Artaud, Bataille, Sade. Uma história de empolgação sexual – os amantes vão numa vertigem que passa por todas as formas de carícia e penetração. E tudo termina em castração e morte. No filme seguinte, de novo a paixão e a morte, agora com um pitada de fantástico.
Os dois Impérios fizeram de Oshima o cineasta do espanto. Todo mundo se perguntava – aonde ele vai depois disso? Foi longe. Impérios ainda permaneciam, no limite do gênero, como abordagem do casal tradicional. Vieram depois Furyo – Em Nome da Honra e Max Mon Amour, que Oshima também levou a Cannes. Em Furyo, a paixão não ousa dizer seu nome e o brutal comandante japonês do campo de prisioneiros (Ryuichi Sakamoto, que também compôs a trilha imperial do filme) submete às mais duras sevícias o oficial inglês (David Bowie) que lhe provoca perturbação e desejo. E Oshima ainda ousou mais. Em Max, com roteiro de Jean-Claude Carrière – colaborador de Luis Buñuel e Peter Brook -, a bela burguesa Charlotte Rampling forma triângulo com o marido e… um macaco.
É a hora certa para se reavaliar o cinema de Nagisa Oshima e a acuidade de seu olhar sobre a sociedade japonesa – e a civilização ocidental. Para isso começa hoje no Centro Cultural Banco do Brasil um ciclo de nove filmes. Pertencente a uma família aristocrática, ele teve um começo difícil, trabalhando com literatura e teatro antes de se tornar assistente. Demorou um pouco para se tornar diretor, mesmo na ‘modernista’ Shochiku, dentro do rígido código de castas (funções) que determinava as regras dos estúdios. Em 1959, aos 37 anos, realiza seu primeiro longa – Uma Cidade de Amor e Esperança. Seguem-se Juventude Desenfreada e O Túmulo do Sol. Oshima filma a juventude e seus excessos. Tendo feito estudos de Direito – e se especializado em história política – aborda temas que são considerados ‘proibidos’, como o tratado nipo-americano no fim da 2.ª Guerra. À ousadia dos temas corresponde a ousadia estética – longos planos-sequência que desencorajam o público.
Mas ele funda uma sociedade independente e logra seguir filmando. No Japão é considerado pouco comercial, mas os filmes chegam ao Ocidente. Violência ao Meio-Dia, Canções Lascivas, O Regresso dos Três Bêbados. Os críticos destacam que Oshima não se assemelha a nada nem ninguém no cinema japonês. E aí, em 1969, vem O Garoto. A família tradicional – à maneira de Yasujiro Ozu – desintegrou-se, o menino é treinado para se jogar diante dos carros. Seus ferimentos, da alma mais que os físicos, o consomem, mas são o sustento dos adultos que dele dependem (e não o contrário). Mais um longa ou dois, incluindo o admirável A Cerimônia, e inicia-se nova fase com Os Impérios. Oshima radicaliza os impulsos sexuais e os comportamentos antissociais. Esteve adiante de sua época. Deixou um legado que não cessa de surpreender. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.