Existem tantos crioulos loucos na história da música afro-americana que seria perda de tempo contar. Alguns são fora de série. Quando se fala em jazz, blues e desmiolados, não se pode esquecer Robert Johnson, criador da lenda do pacto com o demônio, numa encruzilhada das rodovias 61 e 49, em Clarksdale, Mississippi.
Até hoje ninguém sabe se foi lenda ou lorota, mas ninguém quis conferir. A lenda diz que Jonhson não sabia tocar violão muito bem, apareceu na tal encruzilhada e se encontrou com o capeta.
Em troca de virtuosismo, vendeu a alma. A partir daí tocou violão como ninguém. Há versões que garantem que o ‘capeta’ da história foi Charley Patton, que na legendária Dockery Plantation, além de Johnson, também deu força a John Lee Hooker e Howlin’ Wolf. Mas quem era Patton para competir com o prestígio do capeta em matéria de pactos macabros?
Como loucura pouca é bobagem, a morte de Johnson foi outra. Em 1938, se apresentava no bar Tree Forks e flertava com uma gostosa, quando o marido dela, dono do bar, botou estricnina no uísque do galã, que teve um troço e foi morrer alguns dias depois de pneumonia numa cidade vizinha.
Sonny Boy Williamson avisou: ‘Tem troço estranho no uísque, brother’. Jonhson não deu bola. Bebeu e morreu. Vida de bluseiro era assim: altos e baixos. Sonny Boy morreu assassinado num assalto algum tempo depois.
Outro sujeito cuja vida era livro aberto é Huddie William Ledbetter, que entrou para a história do blues como Leadbelly. Não fossem alguns clássicos do blues, Leadbelly merecia atenção pelas temporadas na cadeia e aquela canção meio engajada e meio provocativa chamada Hitler Song.
Foi talvez o primeiro crioulo a mandar recado desaforado a Hitler. Quando o ditador era vivo. E considerando que a América estava cheia de fãs do führer, não se pode negar a coragem do sujeito. Outro que era bem maluco era Miles Davis.
Foi dos maiores trompetistas do jazz, mas também esbanjou tudo o que ganhou em sexo e drogas, tornando-se dependente de várias delas, passando boa parte do tempo em seu apartamento, saindo apenas para comprar mais drogas.
No fim da vida suas principais preocupações eram como driblar a anemia falciforme, bursite, depressão e úlceras. Ele tentava enganar tudo isso com álcool e heroína.
Thelonious Monk tinha mania de emitir aforismos que ninguém entendia e ficava períodos sem falar com ninguém. Nem com a turma que tocava com ele. O baixista Al McKibbon relatou que durante a turnê em 1971 o pianista disse apenas duas palavras e mais nada.
Quando a turnê acabou, Al foi lá e perguntou a Monk por que não se comunicava com o grupo. Monk disse que não podia porque McKibbon e Art Blakey eram muito feios.
Os últimos seis anos de vida de Monk foram na casa de uma velha patrocinadora de jazzistas, a Baronesa Nica de Koenigswarter, que cuidara de outro gigante, Charlie ‘Bird’ Parker, que ainda vai aparecer nessa história. Sorte destes loucos que sempre tem uma aristocrata por perto.
Então aparece um branquelo no pedaço. O cara toca bem e é esquisito. Claro que ser doido apenas não é requisito, se fosse assim sanatório seria Academia de Artes.
Chesney Henry Baker Jr nasceu em Yale, Oklahoma, em 1929 e foi morrer longe dos Estados Unidos, em Amsterdã, em 1988. Entre uma coisa e outra foi um dos maiores trompetistas e pá virada que o jazz produziu.
Figura de primeira linha do jazz cool. A maluquice na vida de Chesney começou na família. O pai era músico frustrado, queria tocar banjo num grupo country, mas a recessão adiou seus planos.
Tinha de ganhar a vida. Country era estilo que o filho mais tarde considerou ‘o mais terrível tipo de música do mundo’. A mãe de Chesney ensinou o filho a cantar canções meio eróticas, deixando a entrever latente complexo de Édipo entre os dois.
A mãe estimulou o garoto a participar de concursos e como ele tinha voz aguda, vocal meio feminino, a turma chamou o cara de maricas. A vida de Chesney era dura.
O pai resolveu ajudar e deu um trombone de vara para o moleque. Ele não se deu bem com o trombone de vara. O instrumento era grande. Foi assim que o trompete entrou na vida do garoto.
Ele começou a tocar trompete e um dia na rua outro garoto jo-Chesney caiu na heroína e perdeu noção de tudo,menos de como tirar um belo som do trompete gou uma pedra.
Chesney quebrou um dente da arcada superior. O pai ficou fera. A mãe arrumou dente postiço, o filho não quis. Sem dente o garoto não podia tocar direito. Chesney arrumou jeito. Evitou os agudos e se concentrou nas notas médias. Com vergonha de mostrar a boca sem o dente quebrado, sorria de boca fechada.
Criou fama de ter um sorriso ‘enigmático. Ficou estranho, mas contou ponto. Ele cresceu e no serviço militar tocava o dia inteiro na banda do regimento. Depois de um ano na banda qualquer um fica de saco cheio. Chesney ficou.
Ele tentou cair fora levando o psiquiatra na conversa, dizendo que era maluco. O cara sacou a malandragem e o regimento o mandou para Fort Huachuka, na
fronteira com o México.
Algo como Quixeramobim dos Estados Unidos. Ele foi. Sorte foi um psiquiatra mais simpático dizer para ele desertar. Chesney desertou e depois se apresentou em San Francisco. Foi preso. Mas conseguiu atestado de incapacidade para a vida militar.
Em abril de 1952, a vida de Chesney começou a mudar. Ficou sabendo que Charlie ‘Bird’ Parker ia tocar em Los Angeles e precisava de trompetista. Chesney contou muita mentira sobre o encontro com Bird, incluindo que o cara teria depois em Nova York avisado Milles Davis e Dizzy Gillespie para tomarem cuidado com um garoto branco esperto que apareceu na Costa Oeste.
Mentiras e verdades viraram lendas. Mas o certo é que Chesney se encontrou com Bird e do encontro nasceu uma nova lenda do jazz, uma nova referência. A partir de então Chesney deixou de ser o garoto com falha no dente para ser Chet Baker.
O Rimbaud do jazz. O maluco, drogado, que tocava e às vezes cantava sublime. Chesney saiu de fininho e Chet Baker começou a carreira
de uma lenda estropiada, com alma consumida pela heroína.
De uma coisa ninguém nega: Chet, com voz quase sussurrada, influenciou músicos brasileiros como João Gilberto e Carlos Lyra, ou vice-versa. O cara era dotado de criatividade.
Caetano Veloso e Gal Costa eram vidrados nele. O cara pedia o tom e ia adiante. Improvisava com sentimento. O diacho era o vício. E por conta dele, Chet sofreu mais que necessário.
Uma vez comprou droga e não pagou e levou um cacete tão medonho que ficou sem os demais dentes. Dentes sempre se metendo na história de Chet. Sem contar que passava temporada na cadeia.
A fissura por heroína era tão medonha que rendeu história bizarra no Brasil em 1985. Ele se apresentou no Hotel Nacional no Rio e depois no Maksoud Plaza, em São Paulo, quando, depois do espetáculo, afanou maleta e tomou doses generosas que o médico que o acompanhava administrava cuidadosamente para o músico superar as crises de abstinência.
Por pouco não morreu na Paulicéia, como Iracema de Adoniran Barbosa. Chet era tão doido que até hoje ninguém sabe exatamente de que morreu. Todo mundo sabe que foi numa madrugada de 13 de maio de 1988, quando despencou da janela do hotel em que morava e estatelou lá embaixo.
Mas foi suicídio ou acidente? Boa pergunta.A embaixada americana jura que foi acidente, a polícia holandesa acha que foi suicídio. Ele se foi, mas o som de seu trompete continua por ai.
E sua voz também. E quando ele canta quase sussurrando I Get Along Without You Very Well, qualquer um tem motivos para acreditar que ele está falando sério. Nós é que precisamos dele.