O chileno Roberto Bolaño (1953-2003) era um escritor compulsivo – fazia anotações em agendas, blocos de diversas cores, guardanapos. Mas apesar de fragmentário, era um autor metódico, utilizando sempre uma letra pequena porém legível e quase sem rasuras. Deixou assim uma série de histórias inéditas distribuídas em pilhas de papel que somam 14 mil páginas. E que, aos poucos, vêm sendo publicadas, comprovando que, em alguns casos, a morte não significa o ponto final da carreira de um escritor.

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Primeiro foi a pentalogia 2666, seguida de As Agruras do Verdadeiro Tira. Agora, a Companhia das Letras prepara-se para lançar, no início de fevereiro, O Espírito da Ficção Científica, obra que inicialmente foi divulgada na Feira do Livro de Guadalajara, em dezembro. Nada surpreendente, pois a trama se passa na Cidade do México e revela ser uma das prosas com mais frescor do escritor chileno.

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O Espírito da Ficção Científica foi escrito ao longo dos anos 1980 e Bolaño o deixou terminado em 1984. A escrita acompanha a rotina de dois jovens, Jan Schrella e Remo Morán, que dividem uma ala de uma cobertura na capital mexicana. Ambos revelam uma ambição literária – enquanto Jan quase não sai de casa, onde devora livros de ficção científica e escreve cartas tão delirantes quanto enigmáticas para todos autores do gênero, Remo é um poeta inveterado e logo se tornou um dos primeiros alter egos de Bolaño: o personagem apareceria novamente em A Pista do Gelo, publicado em 1993, e é apaixonado por Laura, inspirada em Lisa Johnson, um amor de juventude de Bolaño e que reaparecerá em Os Detetives Selvagens (1998).

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O livro reproduz os ares juvenis de seus personagens, recheado com maravilhosas metáforas (“Chegava o amanhecer e o medo ia embora. O amanhecer que dizia olá olá seus medrosos olá olá sabem quem sou? enquanto empurrava os vidros da janela e nossas sombras contra a parede”). Os anseios dos dois rapazes colorem a obra com um otimismo ainda que frágil, diante das condições pouco confortáveis que cercam Jan e Remo.

Para a crítica e editora norte-americana Valerie Miles, cofundadora da versão espanhola da revista Granta, O Espírito da Ficção Científica já aponta muitas das obsessões que Bolaño vai desenvolver em suas obras de maior fôlego. Segundo ela, o autor chileno se mostra como um mestre do encantamento. “Neste romance, Bolaño jamais perde o ritmo narrativo e cria uma voz magnética que mantém o leitor completamente cativado, mesmo quando beira a tontice e é patente a manipulação”, disse ela em uma entrevista ao jornal espanhol El Periódico.

De fato, a criação da obra tomou tempo de Bolaño que, em diversas oportunidades, não escondia sua angústia em cartas trocadas com amigos. Na mesma reportagem do El Periódico, dois colegas muito próximos do chileno – o escritor A. G. Porta e o poeta Bruno Montané – recuperaram a correspondência trocada com Bolaño, na qual pinçaram detalhes reveladores sobre como o livro estava dando trabalho.

Em cartas enviadas a Porta, por exemplo, o chileno comenta que “O Espírito da Ficção Científica ainda não sabe caminhar, mas já diz ‘papai'”. A data da correspondência é dezembro de 1984, época considerada a oficial do término do romance.

Mesmo assim, em novembro do ano seguinte, Bolaño confessa ainda estar preso ao livro: “Espero terminar o romance antes do final do ano, mesmo que precise quebrar os tendões do pulso – se é que ele os tem”. A irritação, no entanto, cresce em dezembro.

“Te envio, em envelopes separados, alguns rascunhos do Espírito da Ficção Científica como testemunho da minha absoluta impossibilidade de ter uma vida social. Esse romance de merda me tem atazanado em todos os momentos. Quero e devo terminá-lo em breve (digamos, mais tardar até final de janeiro) e confesso que a tarefa me transformou no Hulk, o homem verde, algo desastroso.”

Chegou janeiro de 1986 e a situação ainda não melhorou. “São três horas da madrugada. Escuto as Cantigas de Santa Maria, de Alfonso X, o Sábio, e devo retornar à minha abominável novela.” O poeta Montané também encontrou uma carta, datada de 1985, em que Bolaño desabafa sobre cenas que não se encaixam na trama – ele menciona o nome dos protagonistas, Remo e Jan. “Meu romance tem de estar terminado antes de 1986! São Philip K. Dick, tem misericórdia de mim!”, brinca ele, mencionando um dos mestres da ficção científica mundial, autor de obras que inspiraram filmes como Blade Runner, O Vingador do Futuro e Minority Report, entre outras.

Escritores desse gênero, aliás, eram bem conhecidos de Bolaño, que, por meio das cartas malucas enviadas por Jan, lista uma série deles, a maioria conhecida apenas pelos aficionados de ficção científica. É o caso de Alice Sheldon, Forrest J. Ackerman, Fritz Leiber, Ursula K. Le Guin e Donald Wollheim, entre outros.

Apesar da escrita aparentemente tortuosa, sofrida, O Espírito da Ficção Científica revela-se um romance que transborda esperança e confiança. Ali, é possível identificar os anos de formação poética, a iniciação ao sexo e as investigações policiais que vão salpicar nas obras futuras do grande escritor. Também a ebulição literária que marcou a Cidade do México, notadamente nos anos 1970, manifestada pela abundância de oficinas de poesia e na circulação de inúmeros fanzines (mais de 600 em apenas um ano, observa um personagem).

A edição brasileira não traz o prólogo original, assinado pelo crítico mexicano Christopher Domínguez Michael, que rechaça a crítica sempre presente em relação à publicação de obras póstumas – no caso de Bolaño, foram oito títulos nos últimos 12 anos, e outros dois livros, um de contos e o poético Diários de Vida, já foram anunciados. “Se ele realmente não quisesse publicar postumamente sua obra, teria deixado instruções explícitas para sua viúva, pois teve tempo para fazê-lo”, argumenta.

O ESPÍRITO DA FICÇÃO CIENTÍFICA

Autor: Roberto Bolaño

Tradução: Eduardo Brandão

Editora: Companhia das Letras (184 págs., R$ 39,90 papel, R$ 27,90 e-book)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.