Centenário de Beckett, o genial criador de Godot

Transcorre no ano fluente mais uma efeméride emblemática: o centenário de nascimento do notável escritor irlandês, dublinense, Samuel Beckett (1906?1990). Poeta, contista, romancista, ensaísta, dramaturgo, foi certamente um dos mais importantes literatos do século vinte, fato que lhe valeu a conquista do Prêmio Nobel, com todos os méritos.

É claro que Beckett teve também inimigos cordiais, detratores crônicos e críticos sistemáticos. Deixemos de lado, porém, os juízos de valor. São inócuos. Evitemos colocações de natureza valorativa ou axiológica. São supérfluas. Resistamos mesmo à tentação fácil, demasiado fácil, de compará-lo a Ionesco ou Genet, Adamov ou Arrabal, Sartre ou Dürrenmatt, Albee ou Pinter. É uma tentação despicienda. A verdade é que Beckett foi, antes e acima de tudo, Beckett.

Autor de Proust (ele, o anti-Proust por excelência…), O inominável, Dias felizes, Fim de jogo, a trilogia Maloy e a peça suprema, À espera de Godot, entre outras obras marcantes, ele foi, sobretudo, poeta. Sempre poeta. Ubiquamente poeta. Quer dizer: um manipulador do verbo elementar, um artesão da palavra, um alquimista desses pequenos conjuntos de hieróglifos que desabrocham, à maneira de cactos, no deserto branco das páginas dos livros, receptáculos retangulares do mundo e da vida.

O que são, afinal, esses sinais gráficos que entretecem a escrita que procura refletir o homem e o habitat em que ele se movimenta? Para Beckett, eles nada mais são do que resíduos do absoluto, cinzas do eterno, sombras paradoxalmente vivas, ainda que efêmeras, do homem irremediavelmente morto. Morto e putrefato.

Poeta do instante que passa, sempre no limiar do Fim, nos umbrais do Ocaso, no vestíbulo do Nada transcendente, embora antimetafísico, Beckett assume uma postura ?sui generis?. Para ele, ao contrário de um Camus ou de um Malraux, por exemplo, o homem e a condição humana pouco significam. O homem é para ele um ser absurdo, dizendo coisas absurdas, agindo absurdamente num universo absurdo, ilógico, espécie de beco sem saída existencial, mas também cósmico. Esse o homem de Beckett, o que vale dizer: hiperkafkiano.

Trazendo no sangue a Irlanda ?mater?, pátria por excelência da absurdidade (mas também de Swift e Joyce, Yeats e Oscar Wilde, Bernard Shaw e tantos outros), escrevendo indiferentemente em francês e inglês, traduzindo-se ele próprio de uma língua para a outra, Beckett realiza o milagre de transcender-se nas páginas dos seus livros. Pois ele, criador, parece não existir, carente de concretude. Existe apenas, a rigor, a sua criação. O criador é um ser fictício, quase fantasmagórico, espectral, feito daquela ?matter of dreams? de que falava Shakespeare.

A única coisa real que existe verdadeiramente para Beckett, para lá de todas as dúvidas, cartesianas ou não, é o verbo que diz, que exprime, que canta. Não digo: que narra, pois que, a rigor, no irlandês não há enredos, tramas, máquinas peripeciais, estruturas narratológicas. De fato, ele mesmo tem oportunidade de afirmar com ênfase, num dos seus textos: ?Eu não tenho nada, absolutamente nada a dizer. Mas só eu sei como fazê-lo?.

Assim, o seu verbo demiúrgico, na sua caligrafia consuetudinária, é a projeção do criador desintegrado, desmontado, demolido. Reduzido à inexistência, a uma espécie de vácuo existencial. Por isso mesmo, os seus personagens não passam de fantoches, marionetes, títeres, saltimbancos fazendo piruetas sem sentido. Onde? No picadeiro do circo que se chama linguagem.

Inquieta, assustadora, mas deslumbrante, hipnótica, magicamente hipnótica, que só raros conseguem ler e compreender, na sua plenitude significante (ou in-significante), a obra de Beckett tem algo de esfinge com mais do que as duas faces de Janus. Uma esfinge patética que nada pergunta e nada responde. Sim, o melhor de Beckett parece às vezes tender inexoravelmente para o silêncio. A sua obra-prima poderia ser, quiçá, um livro de vinte mil páginas, como a proustiana À la recherche du temps perdu. Só que, ao contrário das páginas de Proust, as páginas beckettianas estariam todas em branco…

A integral obra de Beckett, temos que admiti-lo sem tergiversações e sem reticências, é um mero intróito para a morte, o prefácio para o tédio infinito, o preâmbulo para a solidão irremediável. Há nela qualquer coisa de ?miserere?, de ?De profundis?, de réquiem. Perpassa nas suas entranhas uma espécie de nostalgia acridoce daquilo que o homem não é, não foi e nunca será. Entre os escombros e as ruínas de um mundo apodrecido, os homens são apenas vagas sombras fantasmais, absurdas, dialogando com outras sombras inconseqüentes.

Órfãos de Deus, carentes de humanidade consubstancial, os personagens beckettianos parecem sombras emigradas desse reino de sombras que se chama vida. É nessa terra devastada de homens ocos (a ?waste land? dos ?hollow men? elliotianos) que Beckett acaba por plantar as sementes da sua obra difícil, extremamente difícil, problemática, infinitamente problemática. Às vezes, hermética, ininteligível, indecifrável, com seus códigos enigmáticos, quando não crípticos.

Em suma: uma obra feita de labirintos e espelhos quase borgianos, e dédalos escuros onde a leveza do ser não é apenas insustentável, como pretende Kundera, mas é sobretudo impossível. Uma obra construída com páginas cada vez mais rarefeitas na sua textualidade cantante. Felizmente, por detrás do verbo de perdição existe algo, resiste e subsiste algo que salva o criador: o gênio. Só esse gênio redime Beckett na sua marcha batida rumo ao antiuniverso que trazia no sangue, desde a placenta primordial.

Se a vida inteira do irlandês foi uma espera perpétua de Godot, podemos estar certos de que Godot chegou, afinal. No ano de 1990. Godot, queiramos ou não, sempre chega. Tarde ou cedo. 

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