Vera Chytilová sempre rejeitou o rótulo de feminista – preferia considerar-se individualista. “Se há algo de que você não gosta, não siga as regras – quebre-as. Sou inimiga da estupidez e do pensamento simplista, tanto em homens quanto de mulheres.” Como diretora de cinema – autora -, Vera destacou-se nos anos 1960, integrando o que na época se chamava de nouvelle vague checa. Qualquer cinéfilo reconhece o efeito que a nova onda francesa teve sobre o cinema mundial, por volta de 1960. Da França, irradiou-se para o Leste europeu, e houve a nouvelle vague da Checoslováquia, da Polônia, etc. Transpôs o oceano e chegou ao Japão, ao Brasil – no País, o Cinema Novo surgiu como um híbrido de tendências autorais inspiradas pela nouvelle vague e pelo neo-realismo italiano.
E onde entra Vera nisso? Começou na quarta, 24, no CCBB, uma retrospectiva completa, a primeira realizada no Brasil, dedicada à diretora. São 20 longas e seis curtas. Incluem suas pérolas – As Pequenas Margaridas, Fruto do Paraíso, também conhecido como Milagre no Paraíso. A própria Vera Chytilová talvez só não concordasse com o título que a curadora Rosa Monteiro criou para o seu evento – A Grande Dama do Cinema Checo. Na sua juventude, Vera estava mais para despudorada, realizando filmes para expressar as pulsões vitais da juventude.
As Pequenas Margaridas é sobre duas Marias, a 1 e a 2, que se lançam num exercício de hedonismo. Sexo, comida. Buscam o prazer imediato. O filme provocou grande escândalo em 1966. O partido Comunista acusou Vera de indecente e niilista, e ela sofreu as consequências. Quatro anos até o próximo filme, mais sete até o seguinte. Vera chegou a escrever uma carta de autocrítica ao presidente Gustav Husak, na qual chamou suas Marias de ‘bobas’. “O filme é um jogo de moralidade mostrando como o mal não se manifesta necessariamente em uma orgia ou destruição causada pela guerra, e sim que suas raízes podem estar escondidas nas brincadeiras maliciosas da vida cotidiana.”
Em 1961, com Strop, Vera já havia rompido com o academicismo oficial e adotando práticas assimiladas do cinéma-verité, o que lhe permitia, pela mobilidade da câmera e do sistemas de captação do som, embaralhar os limites da ficção e do documentário. Com As Pequenas Margaridas foi ainda mais longe, e com a cumplicidade de seu marido e fotógrafo, Jaroslav Kucera. Nada mais importa para as Marias senão o divertimento. Um passeio num jardim vira dança coreografada, o jantar com o velho rico é uma dupla forma de saciar a fome e enganar os homens – que merecem ser enganados. As Marias comemoram – “Estamos ficando cada vez melhores nisso”, e por ‘isso’ entenda-se enganar os outros, tirar proveito.
A ‘dama’, na época, estava mais para marginal. A liberdade de tom prosseguiu com Fruto do Paraíso, em 1970. Eva está muito interessada num misterioso homem de vermelho, que pode ou não ser perigoso. Com o namorado, ela passa o dia numa espécie de spa, onde o casal se defronta com a tentação. Vera Chytilová fez sua fábula alegórica sobre o Jardim do Éden. Alegórica – e psicodélica, porque se há uma coisa que essa diretora, melhor seria dizer ‘artista’, ajudou a estabelecer foi a fama do cinema checo como o mais belo, visualmente, do bloco socialista há 50 e tantos anos.
Estamos realmente falando de beleza visual, a tal ponto que os críticos, na época, levantavam, a propósito de Vera e da francesa Agnès Varda – que morreu em março – a tese de um cinema feminista, no sentido da intimidade e da delicadeza. Alguém já observou que As Pequenas Margaridas não conta história alguma que não seja sobre destruição. Mas, então, por que as cenas que não seguem um fio narrativo são entremeadas de planos com borboletas, flores – as margaridas do título – e vestidos transparentes? É quase como se a proposta do filme fosse criar uma tapeçaria, ou um bordado, como as luzes e os campos de girassóis da Varda em As Duas Faces da Felicidade, feito um ano antes, em 1965. Chytilová é contemporânea de Vojtech Jasny, que também frequentou a FAMU, a famosa escola de cinema de Praga. Ele é anterior, já vinha dirigindo desde 1955, mas foi em 1964 que adquiriu notoriedade internacional com Um Dias, Um Gato. Por um estranho sortilégio, o gato revela a verdadeira natureza das pessoas, que se tornam coloridas. Apaixonados, adúlteros, corruptos. O gato expõe ao mundo seus problemas, e Jasny, como Chytilová, subvertia cânones do realismo socialista.
A retrospectiva do CCBB é importante porque resgata uma fase que foi muito rica no cinema da antiga Checosláquia. Havia todos aqueles autores – Milos Forman, Kadar e Klós, Jiri Menzel, Jaromil Jires, Jiri Weiss. A Pequena Loja da Rua Principal e Trens Estreitamente Vigiados receberam o Oscar de filme estrangeiro. E então veio a invasão de Praga pelos tanques soviéticos, encerrando a primavera socialista no ano (mítico) de 1968. O cinema permanece vivo como testemunho – os grandes filmes de Vera Chytilová.
Programação
24/4 (quarta-feira)
17h30 – Sessão Curtas 1: Green Street, Miado, Teto e Saco de Pulgas
20h – Jornada – Um Retrato de Vera Chytilová
25/4 (quinta-feira)
15h30 – Pérolas das Profundezas
19h – Procurando Ester
26/4 (sexta-feira)
15h30 – Voos e Quedas
18h – Sessão Curtas 2: Camarada e O Tempo é Inexorável
19h30 – Chytilová versus Forman
27/4 (sábado)
17h – Armadilhas
19h30 – As Pequenas Margaridas
28/4 (domingo)
16h – Fruto do Paraíso
18h – Algo Diferente
29/4 (segunda-feira)
14h30 – Chytilová versus Forman
16h30 – O Bobo da Corte e a Rainha
19h – O Chalé do Lobo
1/5 (quarta-feira)
15h – Praga – O Incansável Coração da Europa
16h30 – Momentos Agradáveis
19h – Conjunto Habitacional
2/5 (quinta-feira)
16h – Banidos do Paraíso
18h50 – Tainted Horseplay
3/5 (sexta-feira)
15h30 – Os Cidadãos de Praga me Entendem
17h – Algo Diferente
19h – Masterclass com Joyce Pais
4/5 (sábado)
15h – Calamidade
17h15 – As Pequenas Margaridas
19h – Debate com a curadora Rosa Monteiro, Joyce Pais e Luísa Pécora
5/5 (domingo)
13h40 – Sessão Curtas 1: Green Street, Miado, Teto e Saco de Pulgas
16h – Tomás Garrigue Masaryk
6/5 (segunda-feira)
13h30 – O Bobo da Corte e a Rainha
16h – A Herança
19h – O Chalé do Lobo
8/5 (quarta-feira)
15h30 – Voos e Quedas
17h45 – Os Cidadãos de Praga me Entendem
19h15 – Fruto do Paraíso
9/5 (quinta-feira)
16h – Banidos do Paraíso
18h50 – Tainted Horseplay
10/5 (sexta-feira)
15h30 – Praga – O Incansável Coração da Europa
17h – Tomás Garrigue Masaryk
19h30 – Sessão Curtas 2: Camarada e O Tempo é Inexorável
11/5 (sábado)
14h30 – Calamidade
16h30 – A Herança
19h – Momentos Agradáveis
12/5 (domingo)
13h30 – Armadilhas
15h50 – Pérolas das Profundezas
18h – Conjunto Habitacional
13/5 (segunda-feira)
17h – Jornada – Um Retrato de Vera Chytilová
19h – Procurando Ester
