Fim da festa. Chegam em casa. Quase seis horas da manhã. Esperaram até que Júlia fosse embora, que o último convidado saísse. Júlia e Marcos. Marquinhos agora. Não gostaram dele no começo. A Tatuagem. Bom menino, no final. Trabalha, ajuda a mãe. Perdeu o pai cedo. O que importa é que gosta da Julia, lembra sempre Dona Amélia. Bom marido vai ser. Pai coruja, desde já é.
Na sala, por tudo, em tudo, lembranças do casamento. Em casa Júlia se arrumou. Fez questão. Laquê, bobs, grampos, peças de roupa, lembranças da correria. Dona Amélia e Tadeu entram em casa juntos. Entram devagar. Evitam comentar o óbvio, o silêncio, o vazio. Amélia deixa a bolsa na sala. Vai recolhendo a bagunça, juntando tudo. Tadeu entra em casa. Vai para cozinha. Quer tomar café? Amélia responde perguntando: Ta com fome? Acho que nem comi na festa. Comi, um pouco. O prato que o garçom trouxe deixei quase todo. A gente não para, né, preocupação que tudo dê certo. Eu comi, mesmo assim estou com fome. Também, olhe, quase amanhecendo. Estava tudo perfeito, tudo. A Júlia estava linda! Era difícil Tadeu elogiar, fechadão.
O elogio fez Amélia parar de falar. Coloca a mão sobre a mão de Tadeu. Só os dois na casa, agora. Júlia tem a casa dela. Amélia quieta, nó na garganta. Tadeu olha o vazio. Repete, linda, a Júlia. Obrigado. Obrigado de quê? Ha, obrigado por tudo, ora, pela festa, por tudo. Obrigado você, eu quase nem fiz nada, você correu atrás, flor, clube, vestido. A Júlia tão feliz. É, ela merece. Foi embora nossa menininha. É, foi. É a vida. Nós vamos ficando. O café ta pronto, não quer? Fiz um pão no forno. Fique sentado, pego pra você.
Amélia levanta, vai até a cafeteira. Sempre gostou de preparar o prato de Tadeu. Tira o café da cafeteira, ajeita no prato as fatias de pão. Integral, agora. Tadeu anda com essa mania saudável. Tudo natural. Tadeu olha Amélia. O tempo cobrou dele mais do que dela. Um infarto, tanto trabalhar, preocupação. Ela parece a mesma de vinte e dois anos atrás. Não ganhou peso, a cor do cabelo a tinta esconde. A mesma Amélia do dia em que a Júlia veio para casa. A lembrança vem, chega na mesa antes do café. Júlia veio da maternidade pequeninha, enrrugadinha. Os dois chegaram em casa. Não nessa casa, no apartamento, o primeiro, que alugaram logo que casaram. Estavam loucos para chegar em casa. Colocar Júlia no bercinho. De repente, daquele dia em diante, a casa, qualquer que fosse, encheu de vida. Na primeira noite, o choro da Júlia, o choro fininho, gritado. Júlia deu pouco trabalho, foi crescendo, mudaram para um apartamento maior, por fim a casa, a casa que construíram. A casa no Social. A casa onde moravam agora. A casa que Júlia havia deixado em busca de seu próprio destino, da sua vida.
A casa ficou grande agora, né, meu bem? Eh, no fim acaba valendo aquela idéia do apartamento. Vender a casa? Tadeu não responde. Amélia continua: Tem o problema da segurança, agora. O Social, de uns tempos para cá… Lembra, a Júlia pequena, a manhã inteira na rua brincando com os amigos. Cê viu, todos lá, no Curitibano. Até o Juliano, que está morando em São Paulo, veio. Ele, a esposa. Já tem um filhinho, me disse ela. Esqueci o nome. Ela é Carla, não Karen, isso Karen. O menino é Juliano mesmo. Hoje, fico pensando, não deixaria minha filha andar de bicicleta, na rua sozinha. A violência tomou conta. Não dá. Amélia serve o café, o pão. Tadeu ergue a xícara, sorve devagar. Pensando, pensando…
Que tal, daqui alguns meses, o Diogo está por aí! Como será que ele vai ser? Acho que vai ser parecido com o Marquinhos, cê reparou, os irmão dele, todos, saídos da mesma forma. Amélia sempre reparava, quem era parecido com quem. Em cinco meses Diogo nascia. Era Diogo desde a ecografia. No começo, a filha grávida, estranho, Júlia ainda era a menininha deles. Como, como aconteceu? No fim paciência, está feito. Outros tempos. Os dois, cabeça no lugar. Aconteceu, pronto, tocar pra frente. Vem um neto aí, ou uma neta. Neto, disse o médico na ecografia. Diogo, o nome que Julia escolheu. Tadeu quieto, sem falar nada. A xícara de café alta, na altura da boca. Segurando a xícara sem beber. Olhando pelo quintal, pela janela da cozinha. Olhando perdido. Deixa escapar o comentário, pensa alto: Ali, no canto. Uma trave. A gente tira de lá aquele canteiro, deixa a grama. Uma trave, daquelas com cesta de basquete em cima…Em cima do meu canteiro, minhas violetas? Vamos colocar do outro lado lá. Encostada na garagem. Pode ser também. Lá, estava pensando em fazer uma churrasqueira maior, pro final de semana. Reunir. Ou uma oficina. Vou voltar pro aeromodelismo. Sabe? Ensinar o Diogo. Imagine só?
De repente, não se falou mais em apartamento, em vender a casa, no tamanho da casa. De repente, todos os espaços estavam cheios de vida. A vida tem mania de encher espaços vazios. De encher de gente, de barulho, Diogo correndo pra lá e pra cá, risadinhas. Marcos e Júlia correndo atrás. O sol chega, esquenta o dia, acorda os sabiás. Amélia vai cuidar das suas violetas. Tadeu, uma régua na mão, medindo o lugar onde vai instalar a trave.
Aristides Athayde
é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commercearistides@aristidesathayde.com.br