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Cartas de uma guerra que não aparece nunca

Quando conversou com o jornal “O Estado de S. Paulo”, pelo telefone, de Lisboa – recém-chegado de Macau -, o diretor Ivo M. Ferreira divagou lembrando detalhes da filmagem de Cartas da Guerra, em Angola. Seu belo filme, adaptado do livro com a correspondência do escritor António Lobo Antunes e a mulher, estreia nesta quinta, 13, nos cinemas brasileiros. Cinéfilos, atenção! Além do longa de Ferreira, que já seria motivo de regozijo, estreia também A Vida de Uma Mulher, o novo Stéphane Brizé, baseado no romance de Guy de Maupassant. E, na Colônia de Férias, do Belas Artes, começa a programação dedicada a Wong Kar-wai. Tudo isso é motivo de celebração.

Mas o filme de Ferreira é especial. “Filmamos numa região remota de Angola, que tinha o cenário adequado para a época retratada, por volta de 1968. Da cidade em que estávamos sediados até a locação era muito longe. Não tínhamos estrutura de guarda-roupa no local, e assim os atores e figurantes já saíam do hotel vestidos de soldados, carregando suas armas de combate. Montávamos nos caminhões que o Exército angolano nos forneceu – sem eles não teríamos feito o filme. Era como se não fôssemos uma equipe de cinema, e todos aqueles homens estivessem indo para a guerra.”

Uma guerra que não aparece nunca. “Foi o que me atraiu no livro de Lobo Antunes. Ele guardou durante anos as cartas que escreveu à mulher quando foi, como médico, para as guerras coloniais. Após ser diagnosticado com câncer, sentindo que poderia morrer – mas ainda está vivo -, liberou o material que as filhas publicaram em 2005, mantendo a cronologia das cartas. Na época, a Guerra da Argélia já havia terminado há tempos e só a ditadura portuguesa insistia em manter o colonialismo.” Numa cena, aparece o retrato do então ditador, António Salazar. “Como a ditadura de Francisco Franco na Espanha, a de Salazar, em Portugal, tentou impedir, durante décadas, que a modernidade chegasse ao país. As guerras na África foram inúteis, absurdas. Sacramentavam o atraso. Lobo Antunes refletia sobre elas em suas cartas. Diz, claramente, que tudo o que vê e sente o retira de sua acomodação e o joga para uma posição crítica de esquerda.”

E Ferreira acrescenta – “A guerra escondia o fracasso da ditadura, a falta de um futuro para Portugal. Hoje sabemos que muitos daqueles jovens voltavam amargurados e desiludidos para um país que não tinha estruturas para acolhê-los. Os suicídios eram muitos. Antônio, o personagem de meu filme, não é só Lobo Antunes. É todos os Antônios do Exército português. As cartas narram uma linda história de amor, mas também mostram, e esse é o ponto, que aqueles homens não tinham um inimigo preciso nem uma guerra para combater. O inimigo eram eles mesmos. Alguns anos depois, os coronéis do Exército fariam a revolução dos cravos, e a ditadura ia se esfacelar.”

Qualquer um que se debruce sobre o período, em busca de informação, ficará impressionado ao constatar como as guerras coloniais eram ignoradas (ou escondidas?) durante a ditadura. “Uma referência vaga no cinema ou na TV, duas ou três frases num livro. E era um tormento diário para as famílias portuguesas.” Um ator muito conhecido do público brasileiro – Ricardo Pereira – faz o Major. Pereira tem feito novelas na Globo. Está no ar com Novo Mundo. Miguel Nunes, um astro da TV de Portugal, é Antônio. “Ricardo não é só um excelente ator. É um amigo. Conheço-o há muito tempo porque, nas novelas portuguesas, ele formava par romântico com minha mulher.” Ferreira refere-se à atriz Margarida Vila-Nova, com quem é casado há quase dez anos.

O repórter conta que a estreia de Cartas da Guerra, segue-se, no Brasil, à de O Ornitólogo, outro belo filme português, de João Pedro Rodrigues. Ferreira conta – “Nossos filmes ficaram parados quase cinco anos por causa da crise econômica. Ganhamos o mesmo edital, mas o Instituto de Cinema não tinha dinheiro. E nenhum investidor queria colocar dinheiro num filme em preto e branco, sobre a guerra maldita.” Para o espectador brasileiro, será inevitável a associação com Tabu, de Miguel Gomes.

“Entendo o que você quer dizer. Preto e branco, colonialismo. Miguel é meu amigo, mas não tem nada a ver.” O P&B surgiu como necessidade dramática. A austeridade da narrativa é algo que o diretor pratica há tempos em seu filmes. Ferreira vive metade do ano em Portugal, metade em Macau. O próximo filme vai se passar lá. Império será sobre a degradação do império colonial português.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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