Como retratar a vida de um artista? Em ação, fazendo sua obra, como propôs Henri-Pierre Clouzot com seu Milagre Picasso? Ou mostrando-o como homem comum, sujeito às contingências prosaicas da existência, como fizeram tantos outros, inclusive Maurice Pialat em seu comovente Van Gogh. Carlos Nader prefere o formato de diário íntimo em A Paixão de JL, documentário poético em torno do artista plástico José Leonilson (1957-1993), que estreia nesta quinta, 25.

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Acontece o seguinte: Nader trabalha sobre uma preciosa matéria-prima deixada pelo próprio Leonilson. Em 1990, o artista resolve manter uma espécie de diário íntimo falado, narrando para o seu gravador o cotidiano do País e o seu próprio. Ouvimos a voz falando de política (o País vivia a era Collor), trabalho, família, relacionamentos amorosos. Fala também de sonhos e fantasias. Não existe descontinuidade entre os níveis de registro. Um sonho pode ser tão significativo quanto uma desilusão amorosa. Uma fantasia sexual equivale a uma conquista. A essa parte sonora corresponde a visual, com imagens do período, algumas sequências encenadas, ou, de preferência, obras e desenhos do próprio artista.

Uma espécie de colagem, bastante significativa, mas não por isso ilustrativa do que está sendo narrado. Por exemplo, numa parte da gravação Leonilson fala de um sonho, no qual um estranho tenta invadir a sua casa, que ele fecha com cadeados. Depois, olha pela janela e essa figura dedilha as barras de ferro das grades como se tocasse uma harpa. Sem dizer que estava “interpretando” o próprio sonho, Leonilson conta que desperta se sentindo muito livre. Pronto para um novo relacionamento, embora o seu atual seja muito mais que satisfatório. Mas ele entende que necessita mais, outros contatos, outras vidas, experiências. Vai do sonho ao real e vice-versa.

Enquanto as palavras são ditas, a câmera fixa-se sobre o pequeno gravador no qual a fita cassete gira. Depois se desloca para uma imagem desfocada, na qual um personagem do qual pouco se vê passa as mãos pelas grades, como se quisesse entrar, mas não forçasse a sua presença.

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O relato de Leonilson toma forma dramática quando ele se descobre portador do vírus HIV. Passa então a falar do inexorável avanço da moléstia, numa época em que se descobrir soropositivo equivalia a receber uma sentença de morte.

A estratégia de Nader para o documentário revelou-se certeira – o filme ganhou o prêmio maior do É Tudo Verdade de 2015, o mais importante festival de documentários do País. No mesmo evento, venceu o prêmio da crítica, organizado pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema, mostrando convergência de opiniões entre júri oficial e o de jornalistas especializados e acadêmicos. Quem assistiu às sessões no evento pôde também testemunhar a comoção do público. O que se comentava, antes mesmo da premiação, era que não havia candidato capaz de derrotá-lo – e isso num ano forte, que, entre os concorrentes, tinha o notável Orestes, de Rodrigo Siqueira, um dos mais contundentes documentários de corte político dos últimos anos. Mas a oferenda de Leonilson se impunha a corações e mentes.

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Por que motivo? Claro, há todo o sentimento de compaixão pelo artista que morre jovem, deixando em pleno curso uma obra em boa parte irrealizada. Tanto ainda por fazer… tanta criatividade jogada fora. É um sentimento que temos sempre diante da morte de um jovem, e ainda mais um artista, produtor do belo. Leonilson tinha 36 anos quando morreu. O que não teria feito, caso vivesse mais? Impossível saber. Lembro das palavras de Merleau-Ponty a respeito do seu amigo comum (dele e de Sartre), o escritor Paul Nizan, autor de Aden Arábia, que também morreu jovem: “A uma vida terminada cedo demais, aplico as medidas da esperança. À minha, que se perpetua, as medidas severas da morte”.

Por outro lado, além dessa circunstância da morte prematura do artista, há a narrativa que vai seguindo e nos hipnotizando, com os chiados do gravador e precariedade de algumas fitas, produzindo uma sorte de música encantatória. É uma voz que fala do (seu) presente, dá testemunha do que vê, sente e sonha. Mas é também como se já viesse de outra parte. De um lugar outro. Do além. Como se aquele Leonilson, que fala ao gravador do seu cotidiano, também já estivesse, de alguma forma, além dele.

Contribui para essa impressão a sequência, digamos assim, abstrata de imagens que acompanha a fala. Embora inclua cenas da vida, o discurso imagético não é referencial. Apela muito para as imagens de obras que, lembremos, nunca são registros literais da realidade, mas interpretações do real, segundo a percepção do artista. A arte cria um mundo próprio a partir da vida, mas a arte não é transcrição do mundo e, se o fosse, seria inútil.

A Paixão de JL nos aproxima, tanto quando possível, do mundo sonhado de Leonilson.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.