O jovem croniqueiro tem 23 anos e saúda, nas páginas do heróico Tribuna da Imprensa, último bastião de resistência à ditadura militar brasileira, o septuagésimo aniversário do poeta Carlos Drummond de Andrade. Rios de tinta e papel celebram o evento. O tempo é só uma arrogância, como arrogantes são os títeres políticos a serviço dos ditadores, e, mais que eles, os próprios ditadores de plantão. O poeta é delicado como a nuvem e hão de rir sempre por ele os seus olhos de menino.
Dois dias depois, pelas mãos de Hélio Fernandes, o jovem croniqueiro recebe uma carta. Rasga o envelope, nervoso. Já adivinhou, seja pelas iniciais do remetente (CDA) ou porque o diretor do jornal não consiga disfarçar, ele também, o ar entre surpreso e jocoso, que a carta é assinada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. A inconfundível caligrafia não mente nem escamoteia – são mesmo de Drummond a carta e as gentilezas com que, comovidamente, agradece as atenções do jovem cronista.
Tenho comigo até hoje o recorte de jornal e a carta – amarelados ambos pelo tempo que urdiu em nós a sua teia. Trinta anos daquele 1972 carioca, baixo censura prévia à imprensa da mais nefasta ditadura brasileira e as contínuas desesperanças com que, frente à grande Treva, só a poesia mostrava-se, ainda uma vez, capaz de nos salvar de nós mesmos.
Agora, no céu que lhe aconteceu, o poeta Carlos Drummond de Andrade completa cem anos! Olho em torno e observo os meus contemporâneos – estão em festa; celebram, aos urros e sarabandas, jubilosos, a brasílica democracia, e no país descalço não descuram da poesia que mora em nós. Mesmo que nus, os pés, estes teimam andar o pedregoso chão.
Não tarda que o jovem cronista, por outros meios, desta vez através dos mineiros que o abrigam e o mimam – de Otto Lara Resende a Maria Helena Cardoso -, venha a conhecer pessoalmente o poeta Carlos Drummond de Andrade. A lembrança do texto publicado no Tribuna da Imprensa é o mote para o jovem cronista ainda mais tímido que o poeta.
Dali até a sua morte, em 1987, um e outro não nos descuidamos jamais. Ele, por pura generosidade e nobreza d’alma; o jovem, pelo capricho, muita vez narcísico, de andar à volta dele, do poeta Carlos Drummond de Andrade, feito com isso vencesse a noite pessoal continuamente interminada. Uma semana antes do final colapso, ainda conversei com ele, mas era já como se conversasse com um fantasma.
A fala curta e a respiração opressa, Drummond era a angústia de quem havia perdido a mais veemente aposta com a vida. Sem a sua Maria Julieta, a única filha, o poeta mexia-se no movediço terreno dos semivivos, dos quase-mortos. A voz que já me ensinara o caminho das ilhas e o percurso das águas, agora era um fiapo de voz ao telefone, exigindo, do Destino, uma explicação.
A explicação não veio e em 17 de agosto de 1987, 12 dias depois do desaparecimento da filha, o posto de o mais importante poeta brasileiro de todos os tempos ficou para sempre vago, ainda que tantos e tão vaidosos carreiristas do hospital das letras tupiniquim tenham a ele se candidatado. Nada, ninguém. Vacante continuou o trono. A poesia brasileira nunca mais viu ninguém que com ele sequer se parecesse.
Cem anos. Na casa de areia de seu centenário, absconsa aragem, o poeta passeia, ave e memória, aéreo e nada, para além de todo entendimento. O maior, pois sim!… De que adianta seja o maior dentre todos os que lhe antecederam e provavelmente frente a todos os que lhe sucederão? Na sala de música do país em festa, falta uma voz – dessas claras, límpidas, quase retilíneas, não fosse de matéria gasosa – e diapasão imortal -, a voz que falta e que acaba de completar, senhores, sua centésima primavera.
Parabéns, Drummond! É o que um agora mais que cinqüentenário cronista pode lhe dizer, os sulcos no rosto e, furtiva, uma lágrima na cara.