Cássio Loredano não tem carteira de motorista. Prefere se deslocar de ônibus. Ou táxi, quando está atrasado. Às vezes, pega metrô – mas se ressente por não poder apreciar a paisagem. Bom mesmo é o “expresso canelinha”, brinca o caricaturista, que anda longas distâncias com frequência: os 7 quilômetros de Laranjeiras, onde mora, ao centro do Rio, por exemplo, ele faz em cerca de meia hora. “Mas não sou flâneur, que é o cara que vai seguindo a folha de papel que o vento empurra. Ando rápido. Gosto de andar pelas calçadas para ver as moças e as fachadas.”
Suas andanças resultaram no livro Rio, Papel e Lápis, e na exposição homônima que o Instituto Moreira Salles (IMS) abriu neste sábado, 8, em seu centro cultural na Gávea. O instituto, que tem nele um consultor na área de iconografia, foi que lhe encomendou as ilustrações, tendo como mote os 450 anos do Rio. Pediu 50, recebeu 61. É que Loredano é um apaixonado pelo seu lugar: “Morei muitos anos em São Paulo, mas quando estava andando na rua na Europa, era pela Avenida Mem de Sá (na Lapa) que eu andava”.
Do Jardim Botânico, na zona sul, a Santa Cruz, na zona oeste, ocupando-se principalmente da área mais central da cidade, Loredano foi a campo com o fotógrafo Aílton Silva, que retratava os pontos escolhidos para que ele os desenhasse posteriormente. “A representação do espaço da cidade é como as que faziam os viajantes do século 19. A grande maioria deles desenhava uma aquarela ou um esboço, que depois era transformado em tela”, diz a curadora Julia Kovensky, coordenadora do setor de iconografia do IMS.
Loredano escolheu não praias e montanhas que fizeram a fama da cidade, tampouco o Pão de Açúcar ou o Cristo Redentor. Usou grafite, nanquim, esferográfica e aquarela para dar forma a igrejas, prédios públicos, monumentos, pontos comerciais e sedes de times de futebol. É o Rio edificado que capta o olhar desse carioca, que já morou na Alemanha, França, Itália e Espanha, países que conheceram seu traço em veículos como Frankfurter Allgemeine, Libération, La Republica e El País.
“O carioca passa pelos Arcos da Lapa como se fosse a coisa mais natural do mundo um aqueduto romano no meio da cidade. Não fico olhando para o Pão de Açúcar, e sim para o Real Gabinete Português de Leitura. Quando levei minha filha Alice lá (ela é a caçula, de 7 anos, irmã de Isabel, de 16, e Júlia, de 21), ela ficou mesmerizada com aquilo”, rememora Loredano. “À praia eu não vou, nem sei nadar. Fico no quiosque bebendo cerveja. Como diz o (cartunista) Jaguar, intelectual não vai à praia, intelectual bebe. Quando brincam que eu sou moreno porque frequento praia, respondo que pego sol andando na rua.”
Ele teve um ano para realizar o trabalho: os desenhos e os pequenos textos que os acompanham no livro. A perspectiva é a de quem vê as paisagens da calçada. Em nenhuma das imagens aparece a figura humana. “Não tem gente para que não se desvie o olhar do que é essencial aqui, que são as fachadas: veja a Biblioteca Nacional, como é linda.”
Editor da revista Serrote, publicação do IMS, e cocurador da mostra, Paulo Roberto Pires lembra que, só depois de finalizar os desenhos, Loredano, conhecido pelas caricaturas de nomes como Shakespeare, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, se deu conta do que fizera: “É um desenhista de pessoas e não tem nenhuma pessoa nos desenhos. Só depois a ficha caiu. Loredano mostra aqui um pensamento sobre a cidade, está dizendo: ‘Olha a barbaridade que a gente está fazendo com o Rio'”, analisa Pires.
Ele não reproduziu fielmente o que viu, mas o que lhe interessava sublinhar. O Teatro Municipal aparece sem vizinhos, tendo apenas à sua direita o prédio onde ficava o bloco carnavalesco Cordão da Bola Preta. “Lembro de ir ao teatro e, no intervalo, escutar a gafieira que vinha de lá”, diverte-se. Na Rua Primeiro de Março, ele reproduz apenas os adornos da fachada da Igreja da Ordem Terceira do Carmo; a igreja ao lado, que considera feia, ficou só no contorno.
A “cartografia afetiva” de Loredano, como aponta o prefácio de Renato Cordeiro Gomes, professor da PUC-Rio e autor do livro Todas as Cidades, a Cidade, entre outros, “ancora-se no presente e refunda a cidade, pela recolha seletiva das imagens que formam uma constelação, ou uma série que pode ser lida em qualquer ordem”. Gomes acredita que o desenhista “atualiza o passado, anacronicamente, com as imagens extemporâneas que rompem o tempo linear, moldando uma visibilidade em que todos os tempos serão trançados, feitos e desfeitos, contraditos e superdimensionados, e permitem revelar detalhes insuspeitos de um Rio de Janeiro nem sempre visível”.
Essa transversalidade fica clara nos desenhos sobre o centro, que foi a primeira região urbanizada da cidade, no século 16, e concentra também arranha-céus. A Igreja de Santa Luzia, do século 18, convive com o Palácio Capanema, símbolo do modernismo dos anos 1940, e edifícios mais recentes; a centenária Igreja do Carmo da Lapa também é vizinha de prédios altos; o Real Gabinete, construído em 1887, tem à frente a escultura do artista Franz Weissmann Retângulo Vazado. “Escolhi olhar para onde ninguém olha, porque está de carro e tem que tomar cuidado para não bater no carro da frente”, o ilustrador sintetiza.