Foi durante um engarrafamento carioca que Deborah Colker chorou pela primeira vez – o que seria apenas uma distração contra o tédio, a leitura do poema O Cão Sem Plumas, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), provocou uma verdadeira comoção na coreógrafa, que foi às lágrimas. Era 2014 e ela se preparava para estrear o espetáculo Belle, mas foi ali que Deborah decidiu qual seria seu próximo trabalho. O que ela não sabia é que aquele longo poema no qual, com uma linguagem depurada, o poeta humaniza um dos símbolos do Recife, o rio Capibaribe, transformaria sua vida e sua carreira.
Cão Sem Plumas (note a omissão do artigo O) estreou na capital pernambucana no início de junho. No dia 19 deste mês, abre o Festival de Dança de Joinville e, depois de passar por outras cidades, chega a São Paulo em 25 de agosto, cumprindo curta temporada no Teatro Alfa. Por onde passa, causa comoção. “João Cabral reforçou minha visão de brasilidade”, conta Deborah sobre seu 13.º trabalho.
Escrito quando o poeta morava em Barcelona e publicado no Brasil em 1950, O Cão Sem Plumas marca o início, na obra de Cabral, da mitologia do rio Capibaribe, aqui retratado distante tanto do realismo puro quanto da idealização lírica, sendo um marco na poesia brasileira contemporânea. “Na paisagem do rio / difícil é saber / onde começa o rio; / onde a lama / começa do rio; / onde a terra / começa da lama; / onde o homem, / onde a pele começa da lama” são versos que fizeram Deborah estremecer.
Depois de estabelecer uma gramática para o corpo no início de carreira e de se aproximar das artes plásticas e da literatura, a coreógrafa (que também compôs para o Cirque du Soleil e trabalhou na Olimpíada do Rio) busca agora um contato mais próximo com o cinema.
“Sempre tive vontade de trabalhar com o (cineasta) Cláudio Assis – sua estética que impõe verdade nas imagens e sua disposição em nadar contra a corrente me aproxima de João Cabral”, conta ela, já totalmente imersa na força da poesia cabralina, árida na estrutura, mas carregada de uma simbologia totalmente humana. A parceria, assim, formou-se naturalmente. “Ajudei a Deborah a entender e a conhecer Pernambuco, que não é apenas um estado da federação, mas uma nação”, comenta Assis, que engrossou a equipe com outros dois colaboradores fundamentais: Jorge Dü Peixe e Lirinha, que se uniram a Berna Ceppas na composição da trilha sonora.
Expoente do mangue beat, Dü Peixe conhecia bem o terreno onde o grupo começava a pisar. Gravou versos e trabalhou em sua melodia, acrescentando coco, maracatu e outras sonoridades. “Pensei em uma grande ópera da lama”, conta. Lama – Deborah logo se convenceu que, para conhecer melhor aquela nação, necessitava viver lá, deixando o conforto de seu estúdio no Rio. Assim, junto com seus bailarinos, passou 24 dias do mês de novembro de 2016 acompanhando o leito do Capiberibe, da fronteira entre o agreste e o sertão até a capital, Recife.
“Fizemos intercâmbios com artistas e moradores locais. Vimos maracatu. Conhecemos a lama. Percebi que os bailarinos tinham de se transformar em bicho-homem. Trabalhamos muito até construir neles o corpo de um caranguejo”, lembra Deborah, que renovou a própria concepção plástica dos movimentos de sua gramática física. São momentos impressionantes, registrados por Cláudio Assis e que são projetados em preto e branco no espetáculo, em um telão, no palco – não como pano de fundo, mas como parte essencial da narrativa.
Em Cão Sem Plumas, Deborah e Assis revelam a deterioração do Capiberibe, invadido por esgoto despejado pelas inúmeras favelas. É a destruição da natureza e, por consequência, do próprio homem. A coreógrafa sentiu-se especialmente abalada pela miséria das crianças – justamente agora em que trava uma batalha pela valorização da vida, personificada em seu neto Theo, a quem o espetáculo é dedicado.
O pequeno garoto sofre de uma doença rara, a epidermólise bolhosa, que deixa sua pele extremamente vulnerável. Deborah chora pela segunda vez ao se lembrar de seu corajoso menino, mas, por ele, tornou-se uma grande incentivadora das pesquisas que buscam a cura. A luta de Theo também está personificada no palco. E Deborah chorou ainda uma última vez, mas de felicidade, ao ser carinhosamente cumprimentada por Inez, filha de João Cabral. “Você conseguiu”, disse ela.
João Cabral de Melo Neto era um arquiteto da poesia
“Meus primeiros livros não falam em Pernambuco. Eu publiquei um no Recife e o outro no Rio de Janeiro, mas eles não têm nada de cor local. Um dia, cheguei ao consulado (do Brasil em Barcelona) e estava consultando uma revista que havia aqui, O Observador Econômico e Financeiro, e descobri que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos e no Recife, de 28 anos. Eu fiquei tão impressionado com isso que escrevi O Cão Sem Plumas, que é o meu primeiro livro sobre Pernambuco. Aí, Pernambuco não me largou mais…”
Esse depoimento de João Cabral de Melo Neto foi colhido por Bebeto Abrantes e Belisário Franca, diretores do documentário Recife/Sevilha, rodado no ano da morte do poeta, em 1999. Ali estão as últimas imagens do escritor e, mesmo 49 anos depois, o rio Capiberibe continuava definitivamente importando para ele. O Cão Sem Plumas foi escrito naquele período, na Espanha, e publicado no Brasil em 1950. Muitos dos versos têm os verbos no passado, como se o poeta se recordasse do rio, confirmando que, mesmo a distância, o Capiberibe estava presente.
“Aquele rio / está na memória / como um cão vivo / dentro de uma sala. / Como um cão vivo / dentro de um bolso. / Como um cão vivo / debaixo dos lençóis, / debaixo da camisa, / da pele”, escreveu o poeta. Autor de uma escrita marcada pelo estilo seco, cortante, uma visão materialista da escrita, além de um desprezo ao enfeite e à beleza fácil, João Cabral era um arquiteto da poesia – cada verso era cuidadosamente pensado, a fim de dar forma a uma estrutura consistente do poema.
CÃO SEM PLUMAS
Teatro Alfa. R. Bento Branco de Andrade Filho, 722. Tel.: 5693-4000. 3ª à 5ª, 21h. 6ª, 21h30. Sáb., 20h. Dom., 18h. R$ 50 / R$ 160. Até 3/9. Estreia 25/8
As informações são do jornal O Estado de S.Paulo