São quase 10 anos desde a última reinvenção. De 2009 até aqui, Caetano Veloso experimentou um reencontro com uma juventude que sequer havia nascido quando ele passou pelo período de exílio, em Londres, ou quando lançou um dos seus discos mais celebrados, Transa, de 1972. Quando o sol foi embora, ao fim da tarde deste domingo, 7, levou consigo o fim dessa era. Caetano despediu-se desse repertório concebido em companhia da Banda Cê diante de 11 mil pessoas que se reuniram no Sesc Itaquera, em uma disputada performance gratuita.
A apresentação marcou também o fim de pequena turnê pouco usual do baiano pela capital paulista. Aqui, ele está acostumado a se apresentar diante de um público acomodado em cadeiras, distribuído ao redor de mesas espalhadas pelo salão. Nas noites de quarta até sábado, contudo, Caetano experimentou o aconchego da Choperia do Sesc Pompeia, com ingressos a R$ 60 e esgotados em instantes. Foi, então, acrescentado mais um show nesta última parte da turnê, marcado para este domingo, a céu aberto.
Meia hora antes da marcada para o início da apresentação, uma verdadeira peregrinação tomava conta da rua de acesso ao portão principal do Parque do Carmo, onde está localizado o Sesc Itaquera. Gente de 30 e poucos anos subia a ladeira, rapazes de barba por fazer, garotas de vestido. Uns fumavam cigarro, outros carregam cerveja.
Este mesmo local recebeu outros tropicalistas, como Gal Costa e Maria Bethânia, recentemente. Nenhuma das duas foi capaz de se conectar com a juventude como Caê o fez, nesta última década. De um projeto que nasceu da inspiração em conjunto com Pedro Sá, regada a discos do Pixies, a Banda Cê foi criada. Marcelo Callado (bateria) e Ricardo Dias Gomes (baixo), integrantes do grupo Do Amor, chegaram para completar o quarteto. A versão de Caetano é rock.
Há quem diga que o músico baiano se apropriou da juventude alheia, como um vampiro que sorve o sangue dos mais jovens para frear o envelhecimento. Esquecem-se, contudo, da necessidade de reinvenção natural. Soa estranho, quando se compara o reinventivo Caetano com outros músicos da sua geração, brasileiros ou não, estagnados em uma mesma tecla. O baiano, como músico, não se deixa levar pelo modus operandi geral. A trilogia dos discos Cê (2006), Zii & Zie (2009) e Abraçaço (2012) escancaram isso.
A turnê de Abraçaço já dura três anos e sofreu alterações ao longo desse tempo, como é natural. Daquela primeira performance em território paulistano, no HSBC Brasil, muito foi transformado. Ou melhor, adaptado. A Bossa Nova É Foda ainda abre a apresentação, mas a ordem das canções foi adaptada, clássicos como Baby, Quando o Galo Cantou, Triste Bahia, figuram entre as dez primeiras músicas da noite. A nova safra, contudo, é a grande estrela dessa turnê. Reinventado, Caê é capaz de fazer o público cantar com a mesma intensidade Estou Triste e Triste Bahia.
Odeio, do álbum Cê, é roqueira, cheia de frescor e rancor, e aplaudidíssima pelo público presente. Cê era um álbum rancoroso na temática, fatalista e inovador. Musicalmente, Caetano foi ainda mais longe em Zii & Zie, com o que ele chamou de transsambas. Por fim, Abraçaço é um comovente encerramento, com o rancor do coração partido cicatrizado, mas com marcas ainda visíveis.
O terreno em aclive localizado em frente ao Palco da Orquestra deixa a experiência pessoal, intimista, compartilhada por 11 mil presentes aqui. Odores múltiplos se misturavam de maneira curiosa, de mexerica a maconha.
Protesto e trânsito
A distância do Sesc Itaquera do centro da capital e a ausência de vagas de estacionamento para as 11 mil pessoas ali presentes criaram engarrafamentos. Carros permaneceram estacionados em frente à entrada principal do Sesc, no único ponto onde eram avisados que o estacionamento com 1,1 mil vagas estava lotado.
Já ao início do show, uma faixa que estampava o nome do estado da Palestina foi estendida, em protesto contra o futuro show de Caetano e Gilberto Gil em Israel. Se ele a viu, nada disse. A versão 2015 de Caetano não quer confusão.
Você Não Entende Nada encerrou a performance, arrebatadora, como deveria, mas ainda há espaço para um bis com outras: Força Estranha, Sampa e A Luz de Tieta. Três clássicos, igualmente marcantes. Baiano, hoje morador do Rio de Janeiro, Caetano entendeu como poucos a alma paulistana quando lançou Sampa. A faixa, soa geograficamente equivocada, não há mais encanamento no cruzamento das Avenidas São João e Ipiranga. Sequer temos uma Rita Lee, como sua completa tradução. Mas é atemporal no sentimento. Cantada em um show gratuito, em um Sesc no extremo leste da cidade, soa tão atual. São Paulo, afinal, é isso, essa mistura descentralizada, heterogênea, como vista naquele gramado.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.