Cesar Camargo Mariano é um sujeito recluso, de poucas entrevistas e ressabiado com o assunto Elis Regina, com quem foi casado e de quem se tornou seu grande amor. Seus silêncios de toda a vida são um nevoeiro que já intrigou a própria Elis e que só o seu piano, talvez, ajude a dissipar. Cesar é o seu piano. Contido, de digitação fechada, sem explosões nem arroubos, apoia-se na levada de uma guitarra quase muda que não ousa aparecer mais do que deve ao mesmo tempo em que se liberta com suingue e controle da pulsação criada pelo baixo e pela bateria – dois instrumentos que ele fez com que se tornassem um só. Cesar é o garçom que ouve bem a voz do cliente antes de servi-lo.
Caco Ciocler é o ator que agora entra neste mundo. Sua missão é ser Cesar Camargo Mariano no filme Elis, dirigido por Hugo Prata, que está em plena etapa de filmagens em São Paulo. Depois, serão gravadas cenas no Rio de Janeiro e em Paris. A estreia está prevista para 2016, com a atriz Andrea Horta no papel de Elis Regina. A natureza de um personagem mais ouvinte e de raro protagonismo, apesar de toda sua importância histórica na criação do que seria chamado de “o som de Elis”, levou Caco a imergir não só nas regiões sombrias de Cesar como nas teclas de seu instrumento. E foi justamente daí que o coelho pulou.
Quando o diretor gritou “gravando” no set e o playback foi ligado, atores e assistentes perceberam que Caco tocava Atrás da Porta de verdade, com força, sobrepondo-se ao volume do próprio disco original que soava pela sala. Nota por nota, sua interpretação escaneava a de Cesar Camargo.
Em uma segunda filmagem, da cena em que Elis vê Cesar pela primeira vez e se deslumbra com seu suingue, Caco foi além e mostrou a instrumental Samblues, um samba-jazz furioso gravado pelo pianista e seu octeto em 1967. A euforia tomou o set. Um ator que não sabia a diferença de teclas pretas e brancas há um mês parecia agir por transe ou por mediunidade.
Foi na noite de Samblues que o telefone do pianista Guilherme Ribeiro, que fazia aniversário na mesma data, começou a receber mensagens de voz. “Demais Guilherme, parabéns. Você conseguiu!” “Cara, sem você aqueles dedos não iam funcionar!” Era a equipe de filmagens, ainda sob o efeito da gravação, agradecendo ao mágico que fez Caco não só tocar piano em 15 aulas como tocar piano em 15 aulas como se fosse Cesar Camargo Mariano.
O realismo na interpretação foi um pedido do diretor Hugo Prata. “Você me traga o seu máximo que eu decido o que fazer com ele”, pediu. A emoção que se conseguiria assim contagiaria o elenco. “As pessoas me diziam que seria uma loucura. Minha namorada me disse que seria uma loucura”, diz Caco. “Perguntavam por que o diretor não substituía minhas mãos pelas mãos de um pianista de verdade nas imagens.”
A lógica das aulas a jato ministradas para situações de emergência, como a dos atores, começa pelo fim. Ou seja, se antes Caco não sabia diferenciar teclas pretas de brancas, hoje ele continua sem ter noção do que seja tal diferença. “Eu não faço ideia de que nota estou tocando, apenas decoro as posições do professor.” Para chegar ao resultado de Samblues, ele diz que decorou “a dança das mãos de Guilherme”. “Mas ele é uma pessoa extremamente musical, isso ajudou muito”, diz o pianista.
A reportagem esteve no apartamento de Caco, na Vila Pompeia, zona oeste de São Paulo, para acompanhar uma de suas aulas. Acanhado, aceitou gravar para a TV Estadão um trecho de Fascinação, que acabava de aprender. As outras em que aparecerá tocando no filme, se nada mudar na edição final, serão, além de Atrás da Porta, Samblues e Fascinação, Velha Roupa Colorida, Cabaré e O Bêbado e a Equilibrista.
Caco será o único não músico a assumir um instrumento no filme de Elis. Andrea Horta também fez aulas de canto para dar a força vocal adequada e com duração precisa durante as cenas em que vai aparecer dublando a voz de Elis.
Os outros músicos não deverão ter o nome de seus personagens identificados. Um único guitarrista será interpretado por Daniel Daibem, sem que se diga se é Hélio Delmiro ou Natan Marques, apesar da profunda importância dos dois guitarristas em momentos distintos da carreira de Elis. “Pela época das cenas (gravação de Falso Brilhante), serei o Natan. Escolhi então instrumentos que acredito que ele usava”, diz ele, munido de uma guitarra Gibson 335, de 1965, e um violão Di Giorgio, também de 65. O baterista é Milton Lecure, a percussão é de Rubinho Lima e o baixista é Gustavo Giglio, de outro universo, apesar das semelhanças físicas com Luizão Maia, o lendário baixista de Elis. Giglio toca com o guitarrista do Sepultura, Andreas Kisser, no projeto solo Kisser Clan.
Caco Ciocler, que não pensa em carreira de pianista profissional, sente um novo prazer. “Quando volto de uma cena em que mandei bem ao piano, volto mais feliz do que quando mando bem como ator.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.