Breves notas à margem do Dom Quixote de la Mancha

Transcorreu neste ano, que rapidamente se encaminha para o seu crepúsculo, uma efeméride das mais significativas: o 4.º centenário da publicação da primeira parte desse livro de gênio que se intitula Dom Quixote de la Mancha, de autoria do poeta, novelista, romancista e dramaturgo que se chamou Miguel de Cervantes Saavedra.

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Com o perpassar dos anos, das décadas, dos séculos, o Dom Quixote acabaria por tornar-se o livro mais importante da língua e da literatura espanholas, e mesmo uma das obras-primas da humanidade. Diga-se antes de mais nada que se trata do livro mais lido e traduzido no mundo, depois da Bíblia. E seus dois personagens centrais, Dom Quixote e Sancho Pança, só encontram paralelo em outra província literária, menor ? a ficção policial. Refiro-me a Sherlock Holmes e o Dr. Watson, criados por Sir Arthur Connan Doyle.

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Começa assim o romance famoso, que outros preferem considerar novela: ?En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme, no hay mucho tiempo que vivia un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocin flaco e galgo corredor. Una olla de algo más vaca que carnero, salpicón las mas noches, duelos y quebrantos los sábados, lantejas los viernes, algun palomino de añadidura los domingos, consumían las tres partes de su hacienda. El resto de ella concluyan sayo de velarte, calzas de velludo para fiestas, con sus pantuflos de lo mismo, y los dias de entresemana se honraba con su vellori de lo más fino?.

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De fato, a história, a estrutura narratológica e a mecânica pericial da obra nos mostram um pequeno fidalgo rural, Dom Alonso Quejada, ou Quijada, cinqüentão, cujo principal entretenimento era a leitura de livros de cavalaria, que eram então, como nas décadas anteriores, autênticos best sellers, não apenas na Espanha, mas em toda Europa.

Mas a obsessão quixotesca com a leitura tornou-se tão intensa que ele acabou por perder a razão, passando a tomar por verdadeiras todas as histórias absurdas e rocambolescas que lia.

Daí à decisão de tornar-se também cavaleiro andante, foi apenas um passo. E para quê? Para erradicar as injustiças do mundo, para corrigir erros, desentortar tortos, socorrer os fracos, ajudar órfãos e viúvas, consolar aflitos, exercitando uma espécie de apostolado cristão, quase franciscano na sua essencialidade. E ei-lo vestindo a clássica armadura cavaleiresca, com seus acessórios tradicionais, assumindo o nome pomposo, quase aristocrático, de Dom Quixote de la Mancha. Tomando por escudeiro um vizinho, guardador de porcos, Sancho Pança, e fazendo de uma aldeã de bom parecer, Aldonza Lorenzo, a sua dama ou princesa, sob o nome peregrino de Dulcinéia Del Toboso.

A partir daí, as famosas ?salidas?, ou saídas, vão se sucedendo, ininterruptas. É um rosário de cômicas façanhas de um quase louco com a mente distorcida, fantasiosa, transfiguradora da realidade cotidiana, devidamente acolidado pelo escudeiral Sancho, que às vezes parece tão louco como o próprio amo. Ambos coadjuvados por cerca de setecentos personagens, a começar pelo cura, pelo barbeiro e pelo bacharel Sansão Carrasco.

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O Dom Quixote se organiza e estrutura, por conseguinte, através das intermináveis andanças dos dois personagens centrais, que, ao longo das páginas da obra, vão ganhando consistência, densidade, materialidade e, mais do que isso, carne e espírito. Vale dizer: vida. Mas há uma desproporção nítida entre os ideais por assim dizer missionários do cavaleiro manchego e a grandeza da cruzada que imagina empreender, com a realidade real (passe o pleonasmo). Resultam desse fato cenas engraçadíssimas, em que o cômico, o burlesco e o ridículo caminham de mãos dadas. Mas, paradoxalmente, em certos momentos, chegam a tangenciar o dramático, o trágico, se não mesmo o patético.

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Seja como for, os constantes diálogos e discussões entre Dom Quixote e Sancho Pança, as impagáveis peripécias em que se envolvem (tão lembrando o Gordo e o Magro dos filmes que encantaram a minha adolescência ? e até hoje me encantam), são altamente hilariantes. O leitor é obrigado a rir, a rir desbragadamente, incontrolavelmente. Às vezes, porém, ri com vontade de chorar. Uma coisa é certa: chega a ser quase miraculosa a forma como Cervantes acaba por transformar dois personagens livrescos, concebidos e construídos pela imaginação e pela fantasia, em dois indivíduos que nos dão a clara sensação de estarem vivos, de serem feitos de carne e osso, e não apenas da shakespeareana ?matter of dreams?, a matéria dos sonhos. Isso graças à força e ao gênio do verbo por assim dizer demiúrgico do admirável criador.

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Acima de tudo, numa espécie de antecipação flagrante das conquistas modernas da Psicologia, Cervantes acaba por fazer uma das mais penetrantes e sutis radiografias da condição humana e da dicotomia ou ambivalência que a marcam e estigmatizam como um ferro em brasa.

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Cervantes e o Dom Quixote de tal modo se confundem e interpenetram que, a rigor, o criador e a criatura, os dois são um só. E ambos se fundem, numa simbiose espiritual indissolúvel, com a própria Espanha.

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Não há dúvida que a vida atribulada de Cervantes, com os seus acidentes de percurso, percalços e vicissitudes existenciais, dificuldades financeiras e outras, o seu ofício de soldado, as suas incessantes viagens por terra e mar, até mesmo as prisões que sofreu, tudo isso o tornou um milionário de experiência.

Como Camões, ele poderia também falar em ?saber de experiência feito?. E é precisamente essa experiência rica, multifacetada, multímoda, que certamente o ajudou na concepção e na realização da sua obra magna, fazendo dela, sem dúvida, a primeira grande obra de arte em prosa da literatura universal, equivalente ao que foi a Odisséia homérica no território da poesia. Mais: o Dom Quixote é certamente o primeiro romance verdadeiramente moderno. Se não for o maior.

(Mas essa é outra discussão, que envolve nomes como Tolstoi e Dostoiewski, Stendhal e Proust, Balzac e Thomas Mann e ?tutti quanti?).

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Indubitavelmente, Dom Quixote é um nítido ?alter ego? de Cervantes. E Sancho Pança é outro. Ambos se complementam e completam dentro da mente e do espírito do criador, do qual são praticamente filhos. O certo é que um não pode viver sem o outro. Para que um veja gigantes e malandrins, é necessário que o outro reconheça apenas simples moinhos de vento. Para que um vislumbre na cabeça do bacharel Sansão Carrasco o famoso elmo de Mambrino, é necessário que o outro veja apenas uma simples bacia de barbeiro. Para que um vislumbre a mui alta e nobre princesa Dulcinéia del Toboso, montada no seu etéreo palaffrém, é indispensável que o outro veja apenas a pobre camponesa montada na seu burro.

Mas o fato mais curioso é que, em certos momentos, o leitor acha mais plausível e aceitável a loucura sagrada do cavaleiro andante, montado no seu Rocinante magro e famélico, do que a sensatez terra-a-terra do seu escudeiral ?fac totum? , escarranchado no seu burro.

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É extremamente fácil constatar que o realismo e o idealismo, o mundo concreto e o reino onírico, o factual e o imaginário, são dualidades que fazem mover a máquina narratológica e a tessitura peripecial da ?opus majus? cervantina. E como representantes olímpicos desse dualismo notório, temos os seus dois oficiantes e intérpretes: o impoluto cavaleiro e seu escudeiral acompanhante. Assim, a cosmovisão quixotesca é comandada pela imaginação, pela fantasia desatada, enquanto a visão sanchopancina é dirigida, não por uma espécie de razão cartesiana, mas por um racionalismo até certo ponto rudimentar.

Seja como for, insisto na tese: os dois tipos se complementam e completam. Os dois, a rigor, são um só ? cindido, dividido. Um, de certa forma, justifica a existência do outro. Irmãos siameses espirituais, um não pode viver sem o outro.

O eclipse de um certamente equivaleria ao colapso do outro. Ainda que visceralmente opostos, radicalmente antagônicos, na sua morfologia e sintaxe existenciais, ambos integram a mesma realidade. São como a cara e a coroa da mesma moeda existencial que há milênios circula na face do nosso planeta. Sempre com o mesmo valor transcendente. Sempre imune às variações erráticas e aos humores variáveis do mercado. Sempre indiferente às oscilações e às curvas, ascendentes ou descendentes, dos gráficos inflacionários ou mercadológicos.

Mas não será essa moeda, afinal, que define em toda a plenitude a nossa condição humana, talvez demasiado humana, como diria Nietzsche?

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Uma coisa é certa: Cervantes exemplifica e demonstra, como ninguém o fez até hoje, e isso à distância de quatro séculos, a radical ambivalência, a abissal dicotomia da condição humana. Assim, os dois personagens magníficos peregrinam, numa espécie de ilíada existencial, pelas planuras intérminas da Mancha, perdidos em divagações que até hoje encantam a humanidade.

Mas o que é verdadeiramente essa região hispânica, ibérica, que se chama Mancha? Ela é por excelência um símile, um retrato, uma representação metafórica do mundo. É lá, nesse palco, que o homem realiza a sua aventura perpétua que vai do berço ao túmulo. Sempre uno e múltiplo, singular e plural. Oficiando sempre a liturgia filosoficamente chamada de ?alteridade?. Mesmo quando cinge contra os rins o cilício áspero e doloroso de uma ilusória e precária unidade. 

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