Brasilidade

Duas caras mostra bem que o incômodo da Globo cresce na mesma proporção que a audiência das novelas da Record. Vidas opostas, o mais recente sucesso da emissora do bispo Macedo, apostou na exibição da marginalidade com pouca maquiagem, com cenas violentas e o cotidiano sangrento da Favela do Torto. Aguinaldo Silva, que ensaiou em Senhora do destino apresentar uma pequena comunidade de casebres na Baixada Fluminense, agora, de forma mais didática, faz quase um estudo anatômico das etapas e dos porquês do surgimento de uma favela.

As novelas de Aguinaldo sempre apresentam esse explícito quê de brasilidade. Habilidoso em expor questões sociais em seus folhetins, o autor passeia com segurança ao apresentar realidades opostas, desde as futilidades quase cômicas da perua emergente da Barra até os simplórios operários nordestinos. Estes habitam uma milionária cidade cenográfica de R$ 3,6 milhões construída no Projac. Lá, passam-se todas as cenas da fictícia Portelinha.

O começo da construção da comunidade, no início dos anos 80s – primeira fase da trama -, remete aos primórdios da edificação da primeira favela do Brasil, no Morro da Providência, no Rio, no início do século passado, pelos sobreviventes da Guerra de Canudos. Na ficção, Aguinaldo enfoca mesmo os que sobrevivem na ambiciosa guerra pelo poder, apresentada no primeiro capítulo, que contou com média de 40 pontos e 60% de participação. E quem mais se destaca é Antônio Fagundes, totalmente imbuído de Juvenal, o líder comunitário e o maior destaque da trama até então.

Mas além dos sombrios tapumes deste núcleo quase desabrigado, apresentado através de uma direção correta de Wolf Maya – mas com poucas inovações -, o autor aposta no dramalhão mais rasgado e folhetinesco. É como se a própria novela tivesse duas caras. Uma, de novelão clássico, com questões sociais e temas mais consistentes. E outra, mais romântica, protagonizada pela sofrida Maria Paula. A personagem de Marjorie Estiano quase se afoga em tantas lágrimas. Órfã após um trágico acidente com os pais, a rica adolescente cai na já batida história dos golpistas e fica na miséria. Dalton Vigh, como Adalberto, até convence como o grande vilão que justifica suas falcatruas pela apologia ao crime que seu pai exercitava durante a infância do filho.

Com atuações coerentes, mas longe de serem extraordinárias, os núcleos mais ricos ainda não conseguem colorir a temática cinzenta da trama. Afinal, um dos objetivos é mostrar uma seca e inóspita realidade num horário onde as pessoas necessitam justamente esquecer a primeira página dos jornais. Chegar em casa após o bombardeio diário de tragédias e conflitos sociais e ainda ter de encarar conflitos lacrimosos numa produção que deve priorizar o entretenimento chega a ser desgastante.

Principalmente depois de Paraíso tropical, onde a própria abertura, com belas tomadas aéreas de Copacabana, já era um bálsamo para se entrar no encantado mundo glamouroso de Gilberto Braga. Nos próximos meses, resta a tomada aérea de maquetes de barracos. Sai de cena o glamour para dar lugar à ficção hiper-realista. Aguinaldo recorre, é claro, a um pouco de anestesia romântica. Mas carrega nas tintas de antigas notícias recortadas, que tanto o inspiram, ao fazer o retrato de um Brasil em preto e branco.

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