Era junho de 1953. No porto de Santos, um navio atracava. Entre os passageiros, desembarcava a família Kambayachi, que fugia de seu Japão natal, castigado pela fome e pela guerra. A caçula dos seis filhos, Mariko, tinha sete anos.

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Em terra firme, muitos beijos, abraços e lágrimas salgadas pela saudade. A família Kambayachi, cujo nome vem da geração dos samurais, estava há muito separada: os parentes da matriarca haviam partido rumo ao Brasil 20 anos antes.

Além da saudade, um Japão assolado por duas guerras mundiais também castigara a família, nativa de um vilarejo a oito quilômetros de distância do local onde hoje existe a usina nuclear Dai-ichi, em Fukushima.

Logo no começo da estadia, sustos. Era época de São João no Brasil, o que é sinônimo de muitas festas e fogos de artifício. Porém, para quem estava acostumado a brutais bombardeios quase incessantes, as explosões resgatavam o trauma de viver no olho do furacão da guerra.

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No entanto, o Brasil foi uma mãe acolhedora para a família tão sofrida. Mariko nasceu em 1945, apenas nove meses depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Não havia comida disponível. A solução? Comer o que conseguiam. Durante este período amargo, a alegria da família era quando uma de suas irmãs mais velhas conseguia achar uma lagarta para servir de refeição.

Além de comida, as terras brasileiras também ofereciam paz. A família não precisaria perder mais membros no fogo cruzado da guerra além de um irmão do patriarca. Os filhos de quinze anos de seus vizinhos não se tornariam pilotos de aviões kamikaze. As crianças não mais precisariam ter treinamento de combate com bonecos e lanças de bambu na escola. Suas brincadeiras não mais seriam imitar o barulho da sirene que avisava sobre os bombardeios e logo em seguida se esconder.

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O ano, desta vez, era 2011. O dia, 11 de março.

Mariko acordava em sua casa localizada em uma tranquila rua sem saída no Bom Retiro. Não era mais uma criança: era casada, tinha filhos e assinava Mariko Chikude. Já era brasileira naturalizada.

Neste dia, uma de suas irmãs fazia aniversário. Logo cedo, ligaria para ela para parabenizá-la. Mas antes, habitualmente ligou a televisão no canal japonês NHK. Viu a usina Dai-ichi, que havia visitado em 1994, sendo afogada pelo tsunami. Sua cidade natal sendo balançada pelo implacável terremoto. No telefonema com a irmã, o aniversário foi quase para o segundo plano.

Do outro lado do globo, a família de Mariko que continuava no Japão fugia às pressas, sem levar nada consigo. Suas casas não foram destruídas, continuam firmes, sem uma única rachadura. No entanto, como são próximas da usina, foram contaminadas pela radiação. Nas poucas vezes que as visitam, é pouquíssimo tempo e usando uma roupa protetora contra a contaminação.

Esta virou a grande sina de todos os que residiam na região. A população teme que a radiação seja contagiosa e prefere manter distância de pessoas vindas de Fukushima. A situação lembra a dos sobreviventes das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, que também foram marginalizados por medo do contágio. As crianças não brincam mais do lado de fora. Os trabalhadores da cidade, que um dia tiravam da estação seu sustento, foram por ela obrigados a largar tudo para se salvar.

Fukushima tornou-se uma cidade fantasma. A culpada foi a mesma que trouxe à ela o progresso: Dai-ichi. A família de Mariko partiu para áreas não contaminadas. Nem mesmo podem visitar os túmulos de seus pais e avós, pois estes estão na área crítica. Isto causa tremenda dor: os japoneses têm profundo respeito e honra por seus ancestrais.

As mudas telepáticas, cegas inexatas, rotas alteradas e rosas cálidas de Vinícius de Moraes, vistas pela última vez na Segunda Guerra Mundial, podem não retornar na mesma quantidade de antes, mas renascem. Mariko pensa que o p,ovo japonês, um dia tão orgulhoso, aprendeu que a humildade é uma qualidade a ser exercitada. Também é agradecida aos países que, mesmo pobres, fizeram o que podiam para ajudar o Japão. Um raro resgate da humanidade do humano no mundo selvagem dos dias de hoje.