Logo nos primeiros anos de vida, as crianças aprendem o alfabeto e a formar sílabas, os números e as primeiras operações matemáticas, mas e no caso das crianças cegas? As mesmas práticas valem, porém é o braille o sistema de escrita e leitura usado. De acordo com dados do IBGE de 2010, há cerca de 500 mil pessoas incapazes de enxergar no Brasil e mais de 6 milhões com algum tipo de deficiência visual.

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Este sistema de escrita e leitura tátil é usado por pessoas cegas ou com baixa visão, e possibilita que essas pessoas leiam de livros a rótulos de alimentos, de botões de elevador a bulas de remédio, de teclas de máquina de lavar a dados de contas a pagar. Entretanto, sua inserção nos mais variados objetos ainda é limitada – limitando, consequentemente, o acesso de cegos a tarefas básicas do dia a dia.

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Mesmo com recursos de leitura digital, muito utilizados em computadores, o braille continua sendo o sistema utilizado na alfabetização de cegos. “De uma certa forma, as pessoas veem esses recursos como substitutos do braille, mas eles não são, pois quando os cegos usam esses recursos, eles estão simplesmente ouvindo, mas não estão aprendendo como se escreve uma palavra, a ortografia, por exemplo”, explica Regina Oliveira, Coordenadora de Revisão da Fundação Dorina Nowill para Cegos e membro do Conselho Mundial e do Conselho Ibero-americano do Braille.

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O dia 8 de abril marca o dia nacional do braille, que está listado como um dos recursos que devem ser respeitados na sociedade para inclusão da pessoa com deficiência visual, de acordo com a Lei Federal 13.146/2015. Para as pessoas cegas, ter a maior quantidade de textos em braille em seu dia a dia significa autonomia.

Cleide Severiano é revisora de textos da Fundação Dorina Nowill e foi alfabetizada em braille apenas na fase adulta, pois quando era criança ela não ia à escola. Ela conta que já viu algumas melhorias na acessibilidade de cegos no dia a dia, mas acredita que ainda há muito a ser feito, e elenca atitudes simples que poderiam ajudar muito os cegos.

“Quando eu vou ao supermercado, por exemplo, eu já encontro algumas embalagens em braille, mas às vezes as pessoas simplesmente não sabem armazenar o produto e colocam peso em cima. Com isso, a gente vai ler uma caixa às vezes e não consegue porque o braille está marcado”, exemplifica Cleide.

Porém, a sensação de conseguir fazer suas compras sozinha é libertadora. “Quando eu pego uma caixinha e consigo ler o nome, dá uma sensação de autonomia, de liberdade incrível. No mercado, nas farmácias, quando eu toco ali e encontro o produto que quero, leio em braille, é uma emoção muito grande para mim”, diz. Mas o braille não está presente apenas em rótulos de produtos, e sim nos livros – e a leitura é uma paixão que ultrapassa o fato de enxergar ou não.

A opção mais comum quando se pensa em leitura para cegos é o livro em áudio. As editoras, inclusive, são obrigadas a fornecer os PDFs dos livros para possibilitar ativar os recursos de leitores digitais em áudio, mas, assim como há pessoas que enxergam que preferem os livros físicos, os leitores cegos também querem ter essa opção.

Lucas Borba também é cego. Ele tem é jornalista, tem 26 anos e foi alfabetizado em braille ainda quando criança, e é um leitor assíduo – atualmente ele está lendo As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. “Eu gosto muito do braille. Depois que você tem a oportunidade de ler o livro em braille, você tem uma proximidade maior com a obra, assim como as pessoas que leem livros a tinta, eles os preferem aos livros digitais. É uma coisa mais intimista, tocar, cheirar”, opina.

Cleide concorda. “Eu gostaria que houvesse muito mais títulos em braille, é exatamente isso que o Lucas falou: tem cheiro, tem textura”. A leitura faz parte de sua vida, inclusive de sua profissão. Ela começou trabalhando como controladora de paginação na gráfica da Fundação Dorina, e há cinco anos é revisora de livros em braille.

O sistema de leitura, inclusive, tem a vantagem de ser um ensino constante, ao contrário dos livros em áudio. “Hoje estou cursando letras e, infelizmente, não tenho braille. Gostaria muito que a faculdade disponibilizasse. Eu uso muito o PDF, mas não é a mesma coisa. Se eu ficar com a leitura no computador e não ter o contato com as letras, eu não aprendo a escrever. Eu só consigo derrubar essa barreira de ter ficado fora da escola com o braille. É muito importante mesmo”, diz.

Pensando nisso, Wanda Gomes, que atua com design gráfico desde 1985, começou a pesquisar sobre questões relacionadas à deficiência visual. Em 1999, ela foi apresentada à escritoa Lia Zatz, que havia sido indagada por um pai de uma menina com deficiência visual sobre livros em braille. Wanda já pensava em trabalhar com projetos de acessibilidade desde a faculdade. “O encontro foi fantástico”, relembra.

A primeira ideia foi um livro infantil usando braille, mas logo o projeto se expandiu com a premissa da inclusão. “Mergulhei profundamente nas necessidades da pessoa com deficiência visual desde a infância mais tenra, o desenvolvimento emocional e social, a educação e o acesso à cultura de maneira geral”, conta. Cinco anos depois, ela chegou ao Braille.BR, uma tecnologia capaz de cumprir as normas nacionais e internacionais com alta precisão e qualidade, que confere maior durabilidade ao livro e dá acesso igual a pessoas com ou sem deficiência visual. “Essa impressão não exclui a pessoa com baixa visão ou com visão normal”, explica.

Hoje, a WG Produto tem a Coleção Adélia, composta por três livros para todas as crianças, que podem ser comprados na internet e foram produzidos com recursos da Lei de Incentivo Federal do Ministério da Cultura. Devido ao sucesso, a empresa tem sido bastante procurada por autores e editoras que desejam incluir o público com deficiência visual.

Iniciativas como essa estão surgindo, mas os custos maiores de produção e falta de vontade de atender a esse público ainda mantém o número de títulos em braille muito baixo. “Agora aqui na Fundação, eu até tenho contato com uma diversidade de títulos, mas, se eu não estivesse tão próximo da fundação ou de alguma instituição do tipo, o acesso seria muito mais limitado. No geral, as pessoas cegas que gostam de ler acabam tendo de recorrer ao meio digital”, lamenta Lucas.

Wanda acredita que há um vácuo muito grande ainda em relação às leis brasileiras de inclusão na teoria e na prática. “A legislação brasileira que diz respeito aos direitos da pessoa com deficiência é uma das mais completas do mundo, mas falta se fazer cumprir de maneira eficiente e verdadeiramente eficaz. As editoras ainda não têm dados e conhecimento aprofundado sobre esse público consumidor. Esse público, por outro lado, ainda não vê meios concretos de fazer valer seus direitos, de exigir um acesso democrático à educação e cultura. Mas podemos dizer que as coisas têm mudado para melhor, em museus e em leis de incentivo”, opina.

Para Cleide, ainda falta esforço das empresas no geral, o que ela justifica com um exemplo de seu dia a dia. “Eu tenho uma máquina de lavar toda digital e, para eu poder mexer nela, eu adaptei: pedi ajuda para minha irmã, fiz umas letrinhas em braille ‘pretas’ para roupas pretas, ‘brancas’ para roupas brancas e colei. Hoje, quando vou mexer, a sensação de eu mesma girar o botão e posicionar onde quero, eu não consigo nem explicar a felicidade que sinto”, relembra. “Para mim foi tão simples adaptar, então por que as empresas colocam uma barreira tão grande?”.

É justamente essa sensação de independência e autonomia, liberdade e autossuficiência que o braille proporciona, e os livros têm papel importante nesse caminho. Wanda guarda, com carinho, uma lembrança que prova o poder que uma atitude nesse sentido tem na vida dos cegos e deficientes visuais. “Um garotinho cego, depois de ler a página que lhe apresentei, me perguntou: ‘Então quer dizer que a partir de agora não vou ficar lá no outro canto da biblioteca sozinho?’. Isso me emocionou demais e, naquele momento, tive a certeza de que tínhamos atingido o objetivo e rompido um grande paradigma”, diz.