Ainda hoje, quem olha a velha foto de Humphrey DeForest Bogart não se dá conta do ator eleito pelo American Film Institute como a maior estrela masculina do cinema americano de todos os tempos. Quem olha, vê Sam Spade ou Rick Blaine. Bogie ou Bogey ganhou o Oscar de 1951, por Uma Aventura na África e morreu de câncer em 1957. Não era um grande ator, destes de interpretações inesquecíveis. Não precisava. Era apenas um bom ator que dava conta do recado. Bogie fazia isto como ninguém. Antes de alguém estrilar, estamos falando de Hollywood, a indústria que admite três tipos de profissionais masculinos, a que dão o nome de ator. Os astros podem ser canastrões, mas seguram bilheteria. Eles ganham fortunas e são os mais conhecidos. Os caras têm direito a falar besteiras, fazer besteiras e eventualmente serem idiotas. A lista é enorme. Tom Cruise e Brad Pitt são os herdeiros atuais.
Claro que tem a galera de grandes atores, que além de botar roupa diferente, convence o espectador de que é o personagem que está ali. Eles tanto arrastam multidões, quanto provocam fracassos retumbantes, mas não abrem mão de seus estilos pessoais. Os estúdios têm interesse nestes caras para não dissipar de vez o frágil elo que une cinema e cultura.
Eles bafejam de glamour artístico uma indústria que mira o lucro, como qualquer outra. Marlon Brando, Robert de Niro, Dustin Hoffmann e Al Pacino, para não espichar, são alguns dos que pontificaram nas últimas décadas. Philip Seymour Hoffman mostrou em Capote que pertence a esta linhagem.
E tem, finalmente, a categoria dos que dão conta do recado. Cada um à sua maneira. Bogart, Eastwood, Steve McQueen, Charles Bronson, Lee Marvin, para ficar nos principais. Tem lugar para Warren Beatty, Mel Gibson e Bruce Willis. Seria injustiça deixar fora Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger, pelo fato de andarem em cena como dois robôs que tivessem feito algo imprevisível nas calças. Bogart, de longe, foi o rei da turma. O maior. Com a diferença de ter estilo.
Mas nem sempre foi assim. O cara fez quarenta e cinco filmes, tinha 42 anos e em 1941 ainda disputava com George Raft, para saber quem mandava na área dos filmes menores, o nascente filme noir. Raft, que fora gangster e fazia papéis de gangsteres, ganhava. E achava que Bogart era sombra em sua vida, cópia mal feita de seus piores defeitos. Não sobrava para Bogie. Além disso, Bogart era baixinho e tinha um problema nos lábios que o levava a acumular saliva enquanto falava, dando a impressão de espumar de raiva. Mas havia uma vantagem: Bogart era esperto, vinha do teatro e teve boa educação. Isto significava que conhecia mais de arte e cultura que todas as famílias de Raft, incluindo a verdadeira e a outra que o protegia. Bogie esperava a sorte virar. Já tinha feito papéis principais e muitos secundários. E um dia a sorte virou.
E Raft tinha a ver com isso. Não vamos ser injustos com ele. Raft também não era pouca coisa. Foi um dos três maiores gangsteres do cinema. Edward G. Robinson e James Cagney eram os outros. Na vida real era jogador, do tipo que se ferrava. Perdeu a maior parte do dinheiro que ganhou nas mesas de jogo. O diacho era que, como se pode ver, não jogava bem. E isto também acontecia no cinema. Um dia ficou cheio de morrer no final dos filmes, quase sempre de forma violenta e passou a recusar papéis cujos personagens morriam. Este estranho hábito lhe custou dinheiro e reconhecimento. Ele ficou fora de clássicos como Seu último Refúgio (High Sierra, 1941). Em O Falcão Maltês (The Maltese Falcon, 1941) não quis trabalhar com um diretor estreante chamado John Huston, que veio a ser um dos grandes cineastas americanos. Mandou recado para os estúdios: ‘Jamais vou fazer Sam Spade’. Se ferrou. Para coroar, em 1944, o esperto Raft recursou Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944), com Billy Wilder. Em três anos chutou três dos melhores filmes dos anos 40.
Nos dois primeiros casos, adivinhem quem estava na área para conferir? Exatamente. Humphrey Bogart. Ele se deu bem em ambos. No terceiro caso, quem se deu bem foi Fred MacMurray. E foi assim que Bogart deixou a categoria de sombra de Raft para ser um dos maiores nomes da história do cinema, enquanto Raft, depois de tanta esperteza, entrou e,m decadência. Ele ainda pode ser visto no papel de gangster em Quanto mais quente melhor (Some Like It Hot, 1959), de Billy Wilder. Mas foi só. Uma espécie de justa homenagem. Quanto a Bogart, ele não era mais um garoto quando a sorte bateu em sua porta. Estava com mais de quarenta.
E precisava aproveitar a maré boa e descontar o tempo perdido. Bogart não deu bobeira. Um ano depois de encarnar Sam Spade, caiu em seu colo um dos personagens mais emblemáticos e uma das histórias mais marcantes da história do cinema, embora inverossímil até onde podia sem o risco de cair no ridículo. Casablanca (1942) abriga o provável maior triângulo amoroso do cinema, com o maior corno do cinema (Paul Henreid na pele de Victor Laszlo) e ainda por cima com o maior par romântico: Bogart e a divina Ingrid Bergman.
Sem contar o delegado de polícia (Claude Rains como Capitão Renault) mais sem vergonha e o ladrão mais azarado (Peter Lorre como Guillermo Ugarte). O filme tem os melhores diálogos, embora alguns bem estúpidos: ‘Isso é um canhão? Ou o meu coração batendo?’. Mas não interessa. O que interessa é que tudo encaixou. Virou clássico. Como teria dito o atacante Jardel: Clássico é clássico, e vice versa. Uma das principais críticas de cinema, Pauline Kael, definiu assim o segredo de Casablanca. ‘Ingrid Bergman tornou-se uma favorita do público quando Humphrey Bogart, como Rick, o mais famoso dono de bar da história do cinema, tratou-a como uma vagabunda’. Uma definição interessante, embora não seja todo dia que apareça uma vagabunda como aquela na vida de um sujeito.
Kael não achava Casablanca um grande filme. Desdenhava: ‘Contém um apelo especial de romantismo barato’. Talvez por isso pega cheio o coração de tantas pessoas. A maioria das pessoas não está preocupada com piruetas intelectuais e racionais de uma crítica do New Yorker e sim com o velho, surrado e gostoso romantismo. O certo é que depois deste filme, Bogart não precisava mais se preocupar com sua história no cinema. O capítulo dele estava garantido.
E como das outras vezes, por pouco ele ficou fora. A ambição da Warner Brothers com o filme não era grande. Era apenas mais um dos cinquenta filmes anuais e não era uma aposta. O papel de Rick era destinado a Ronald Reagan, que anos depois conseguiu um grande papel em Washington. O cara não pegou o papel principal em Casablanca, mas ficou com o principal na Casa Branca.
Nada mal. No fim, os dois saíram ganhando. Bogie fez outros filmes, num total de 86 fitas. Algumas notáveis. Um deles é O Tesouro de Sierra Madre (The Treasure of the Sierra Madre, 1948), de John Houston, com o pai do cineasta entre os atores. Outro foi Uma Aventura na Martinica (To Have and Have Not, 1944), de Howard Hawks, que reuniu dois prêmios Nobel de Literatura, Ernest Hemingway e William Faulkner, que tentavam arrumar o roteiro enquanto enchiam a caveira de rum.
Neste, o quarentão Bogart conquista a mocinha, dentro e fora da fita. Lauren Bacall tinha 20 anos, mas era esperta, bonita e apetitosa. Bogie sabia disso e ficou com ela. Aquele anjo foi a última coisa boa que Hollywood lhe deu. E, pensando bem, não precisava mais.