Sem nenhuma divulgação prévia, já está nas lojas o livro em que o biógrafo Paulo César de Araújo narra a batalha jurídica que o envolve a Roberto Carlos desde 2007, quando o cantor impediu a circulação de Roberto Carlos em Detalhes. Um esquema sigiloso fez com que o lançamento pegasse todos de surpresa: os fãs, a mídia e os advogados de Roberto.
Paulo Cesar não retrata apenas os dias traumáticos de embate na corte. Sob o título O Réu e o Rei – Minha História com Roberto Carlos, em Detalhes, o livro abre como uma autobiografia de um biógrafo. A infância em Vitória da Conquista (na verdade, ele nasceu no bairro de Ermelino Matarazzo, a “Bahia de São Paulo”), suas primeiras sensações ao ouvir o ídolo, sua chegada ao Rio de Janeiro, sua condição de fã precoce. Analisa todos os discos de Roberto na paralela dos fatos de seu próprio amadurecimento pessoal e contextualiza tudo com apuração de fatos políticos e sociais de época. “Eu nasci em 1962, ano do primeiro sucesso de Roberto”, diz ao jornal O Estado de S.Paulo. “Sou personagem e narrador.”
A história do biógrafo que consegue vencer no Rio de Janeiro e lança um livro de seu ídolo recebe um golpe afiado a partir de 2007, quando Roberto deixa claro, durante uma coletiva de imprensa, de que vai processar Paulo Cesar. Começa a longa batalha e Paulo, a partir daí, revisita todos os corredores de tribunais pelos quais passou para se defender das acusações do cantor. Vai aos jornais da época e reproduz trechos de matérias e frases ditas em debates sobre o tema. Traça minuciosamente o caminho que deságua na grande discussão de 2013, quando a liberdade de expressão foi colocada no córner oposto ao direto à privacidade. E faz da luta dos artistas reunidos no grupo Procure Saber, todos sob comando da produtora Paula Lavigne, para conter suas histórias sob seus domínios um fato biográfico. A tentativa de controle da história se converte na própria história durante a narrativa de Paulo Cesar.
Se foi preciso coragem para cutucar o gigante com vara curta, Paulo responde primeiro: “Sempre disse e vou continuar dizendo: as trevas não devem prevalecer sobre a luz”. Luiz Schwarcz, diretor geral da Companhia das Letras, editora que lança o projeto do biógrafo, prefere que a crítica responda: “Que vocês e as pessoas façam este julgamento”. Colocar os livros nas lojas sem alarde, ele admite, foi uma estratégia. “Achamos mais correto fazer assim.”
Ainda no calor do julgamento, Paulo vai aos pormenores do processo para contestá-los um a um. Faz sua defesa citando os advogados de Roberto e os juízes que o examinaram. “Marco Antônio Campos (advogado do cantor) garante que na biografia está dito que Roberto ‘era assíduo frequentador da cobertura de Carlos Imperial, onde as festinhas eram regadas a todos os tipos de drogas’, e que, ‘uma vez, uma menor foi estuprada e morta numa dessas festas’. Ou seja, a narrativa de um processo de corrupção de menores que, conforme consta de forma explícita no meu livro, não atingia Roberto Carlos, foi transformada em um relato que envolvia o cantor no caso.”
Como um desabafo, retoma temas sobre os quais ainda fala em rodas de debate como se engasgasse com um graveto. “Digo (na biografia de Roberto) também que o universo da Jovem Guarda era marcado por uma ‘combinação de sexo, garotas e playboys’. Pois, na página 16 da queixa-crime, essa frase é citada com a troca da palavra ‘garotas’ por ‘drogas’ e, em seguida, os advogados escreveram: ‘e por aí vai o querelante, misturando sexo grupal com homicídio, consumo de drogas com corrupção de menores e bestialismo.'”
Além de se defender das acusações de ter cometido ofensa à imagem do cantor, Paulo Cesar cita erros de texto no processo, pouco cobertos pela imprensa na época. Ele escreve: “Grande parte desses trechos, no entanto, é citada fora do contexto, as frases não têm sequência. Parece uma confusão proposital para dizer que no livro haveria ‘diversos termos e afirmações de cunho difamatório que acabam por ferir gravemente a honra, a boa fama e a respeitabilidade, do artista perante a sociedade e especialmente perante seu próprio público’. E que, diante disto, só restaria a Roberto Carlos ‘requerer a competente indenização por todos os danos morais que lhe foram impingidos’.
A reportagem procurou o advogado de Roberto, Marco Antonio Campos. Sua resposta estava pronta. “Estou sabendo do livro. Nossa posição é a seguinte: vamos ler, examinar e fazer um pronunciamento. Não vamos nos manifestar antes disso.” Disse ainda que o nome da obra, O Réu e o Rei, Minha História com Roberto Carlos em Detalhes será “um dos aspectos que serão analisados.” “Vamos fazer um relatório e enviá-lo para o Roberto.” Se Roberto vai ler o livro? “Não sei, ele lê se quiser, mas faremos assim.” Campos diz, contudo, que parte do princípio de que “este é um outro livro”. “Nossas manifestações anteriores foram sobre aquele livro, este é outro.” Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, o outro advogado de Roberto, que o representa junto ao Supremo Tribunal Federal acompanhando uma ação de inconstitucionalidade movida pelas editoras nacionais para a derrubada do veto às biografias, disse ao Estado não cuidar de casos como este. “É mesmo com o Marco Antônio.”
Ao final das 521 páginas, Paulo Cesar arremata: “Artistas, políticos, empresários, intelectuais e até fãs do cantor concordam que ele comete uma insensatez ao insistir na proibição desse livro. É um desgaste incessante e desnecessário para a imagem do maior ídolo popular da história do país”. Sem o compromisso jornalístico da isenção, sendo ele mesmo o personagem central, faz o que Roberto pode agora considerar um estrago bem maior do que quando a biografia foi lançada, em 2007.
“Hoje, a situação de Roberto Carlos faz lembrar a dos senhores de escravos nas vésperas da abolição. Àquela altura, eles tinham a condenação moral de grande parte da sociedade e apenas uma folha de papel legal a lhes garantir a posse sobre seres humanos. Depois de tudo que aconteceu até aqui, é apenas uma folha de papel assim que permite a Roberto Carlos ser o triste senhor de um livro que outra pessoa escreveu.” E segue: “Porém, assim como os escravos, esse livro não continuará acorrentado. Outras obras literárias já foram também proibidas e até queimadas no Brasil e, no entanto, estão hoje ao alcance de qualquer leitor, em qualquer biblioteca ou livraria. Creio que mais cedo ou mais tarde meu livro terá o mesmo destino”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.