Gênios incontestes, Tom Jobim e Hermeto protagonizaram dois dos mais emblemáticos encontros com Elis Regina (1945-1982). O primeiro, em 1973, resultou no mais incensado álbum da música popular brasileira de todos os tempos. Com inteira, total justiça. O segundo, ao final de um show de Elis no Festival de Jazz de Montreux na Suíça, também nos anos 70. O bruxo albino improvisou como nunca ao acompanhá-la em três canções que ela conhecia bem demais, Corcovado, Garota de Ipanema e Asa Branca. Os acordes de passagem, as modulações inesperadas, as bruscas “viagens” sonoras fora do script a deixaram em pânico. Empate técnico. Se nas gravações em Los Angeles de Elis & Tom o casal Elis-César adentrou o estúdio pela porta dos fundos diante do grande compositor brasileiro amigo e parceiro de Sinatra, no final quem os reverenciou foi Tom. Em compensação, Hermeto deu um raro nó nela em Montreux.
Em ambos os episódios, salta à vista aquela que é possivelmente a característica mais constante da personalidade da maior cantora que este país já viu: uma insegurança atroz, no nível pessoal e afetivo, que se esparramava pelos palcos e estúdios. Isso fazia dela uma pessoa difícil. Para muitos, mau-caráter; para os próximos, apenas insegura, incapaz de aceitar uma rejeição, por menor que fosse. “Por trás da artista livre e senhora de seus atos”, escreve Julio Maria em Nada Será Como Antes, biografia da cantora que será lançada nesta terça-feira, 17, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, “por mais inconsequentes que parecessem, havia uma mulher que começava a se perder dentro de si”.
Jamais viveu sem um guru pessoal/artístico. A lista, longa, começa como Ronaldo Bôscoli, César Camargo Mariano e Samuel MacDowell entre os fixos, e por rápidos romances com Nelson Motta, Guilherme Arantes, Fábio Jr. (com quem quis gravar; sabiamente, ele se recusou), até mergulhar num guru letal, a cocaína, em seus últimos dez meses de vida.
Queria ser reconhecida a todo momento como inigualável, a maior de todas as cantoras. Sabia disso, mas agia como principiante, afastando qualquer um em quem enxergasse ameaça potencial. Por que brigou tanto ao longo de sua vida? Por que criou tantas inimizades, barrou tantas colegas de ofício (como Nana Caymmi, Nara Leão, Maysa, entre tantas)?
Milagrosamente, apesar desse imenso desequilíbrio, Elis Regina conseguiu construir uma obra artística sem paralelo. Desenvolveu um faro incrível para descobrir novos compositores, detectar já na primeira audição que uma canção era essencial, como no caso de As Aparências Enganam, de Tunai, quando, para colocá-la no disco no último minuto, descartou uma de seu querido amigo Paulo César Pinheiro. Tecnicamente, era outro milagre. A afinação espetacular, as transmutações que sabia operar no timbre de sua poderosa voz de contralto, o fraseado impecável, as dinâmicas sutis. Tamanhos apetrechos técnicos fizeram com que, até meados de sua carreira, parecesse mais uma Ella Fitzgerald; a última década, porém, a dos shows conceituais como Falso Brilhante e Saudade do Brasil, viu emergir uma Billie Holiday brasileira. Não porque tivesse algo a ver com Lady Day, mas pela intensidade visceral que punha em cada verso, cada palavra, cada inflexão.
Julio Maria esmiúça com paciência de ourives e prosa aguçada do melhor jornalismo Elis Regina de corpo inteiro. Pela primeira vez, esquadrinha-se a vida e carreira de Elis em sua complexidade. Julio Maria foge dos elogios fáceis como o diabo da cruz. Prefere buscar a descrição mais fiel possível de cada evento, ouvindo todos os envolvidos. Mais de uma centena de entrevistas e um mergulho na imprensa da época revivem lances hoje anedóticos, como a malfadada guerra entre as guitarras elétricas e a “pura” MPB, mera estratégia de marketing da TV Record.
A certa altura, Julio diz que Elis era para iniciados e Roberto Carlos para principiantes: “O grau de dificuldade que procurava nas composições lhe daria vitórias entre os entendidos e derrotas entre os iniciantes. Gostar de Elis não era tão simples quanto se apaixonar por Roberto Carlos”.
É possível
Sem bater na eterna tecla da nostalgia de tempos idos e defuntos, não há como não derramar uma lágrima pensando que já houve época em que músicos e cantores deste quilate ocupavam o horário nobre da televisão. Tempos em que canções como Upa Neguinho, O Bêbado e a Equilibrista ou Alô, Alô Marciano eram marteladas nas rádios. É esta saga magnífica que Julio Maria conta nos mínimos detalhes.
Um momento tão brilhante, na música brasileira, quanto a do badaladíssimo período de ouro da canção norte-americana entre as décadas de 1920 e 1950. Afinal, Elis foi o mais precioso e raro diamante vocal que o País já teve. Merecia uma biografia como esta. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.