De um lado, a capital como bem-sucedido e efervescente centro mundial da arte contemporânea, de outro – a 268 km de distância – a engajada 10ª edição da prestigiosa Bienal de Gwangju (até 9 de novembro), sob o signo da história e do sofrimento de seu país. Como acontece a cada dois outonos, o contraste é inevitável. No SeMA (Seoul Museum of Art) ocorre a heterogênea e feérica Bienal Mediacity, dedicada à arte digital. Na Kukje Gallery, celebram-se os pintores da vanguarda coreana do Dansaekhwa, movimento monocromático nascido nos anos 1970.

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Além das exposições do formidável Artsonje Center e demais fundações e galerias como a Hyundai, no recém-inaugurado e monumental MMCA (National Museum of Modern and Contemporary Art), há uma imponente mostra de Lee Bull, entre outras igualmente importantes. Antes de se encontrar em Gwangju, e também em Busan para a última das três bienais coreanas, o mundo da arte, representado, entre outros, por Richard Armstrong (Guggenheim), Nicholas Serota (Tate), Amit Sood (Google Art Pojects) reuniu-se no colóquio do Leeum, rico museu do grupo Samsung, concebido por Mario Botta, Rem Koolhaas e Jean Nouvel.

Curadores e críticos de arte vindos de toda parte para o congresso anual da Aica (Associação Internacional de Críticos de Arte), também estiveram neste país que, com a China, é o principal e mais bem dotado da Ásia em instituições e mercado de arte. Resultado de um trabalho contínuo de duas décadas, com a iniciativa privada de grandes grupos e o mecenato de dirigentes que influenciaram as decisões governamentais, agora nem o Japão, antiga potência colonial, chega aos pés da Coreia do Sul.

Política, drama e história

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Em Gwangju, na esplanada dianteira do prédio construído para a Bienal, estão dois contêineres. Ao se aproximar de suas aberturas engradadas, o visitante descobre caixas de plástico amarelo sobre estantes, com ossos e crânios em desordem. São restos humanos reais dos cadáveres, encontrados em toda parte, das vítimas das execuções perpetradas no país entre 1950 e 1953. O tom da exposição está dado. De saída, somos advertidos que a política, o drama e a história nacional vão orientar a visita.

No início de 1980, os estudantes da cidade revoltaram-se contra a ditadura militar e o exército os massacrou. O silêncio pesou até hoje sobre esses dois mil mortos (“oficialmente”, 200). Em 1995, o poder reconheceu o acontecimento, iniciou a perseguição aos militares responsáveis pela carnificina e a Bienal de Gwangju foi fundada. Desde então, tornou-se símbolo da luta pelos direitos do homem, em que a militância e a denúncia são mais do que legítimas. A “instalação” macabra dos contêineres de Minouk Lim ilustra também o vídeo igualmente estarrecedor em que ela documenta as recentes exumações e as visitas das famílias aos locais.

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O título que Jessica Morgan, a curadora inglesa, deu à mostra com base na famosa canção do Talking Heads é significativo: Burning Down the House (incluída numa lista americana de músicas possivelmente inapropriadas, depois do 11 de setembro) representa com perfeição o objetivo dos 103 artistas convidados de três continentes. Apesar de sua diversidade, todos têm em comum a ideia de que a arte é moral. Deve traduzir as preocupações sociais, agindo sobre a história e a sociedade.

Nessa mistura de participantes conhecidos e desconhecidos, as descobertas são inevitáveis, algumas francamente cativantes como o filipino Rodel Tapaya, outras surpreendentes como Tetsuya Ishida (1973- 2005). Aliás, são os artistas conhecidos – como Birgit Jürgenssen, Anna Maria Maiolino, Camille Henrot, Otto Piene, Pierre Huyghe, Yves Klein, Lee Bull, Eduardo Basualdo, Xiaodong Liu, Edward Kienholz, Dominique Gonzalez-Foerster, Gabriel Orozco, George Condo, etc. – que estabelecem referências para uma melhor apreciação dos novatos.

As obras são fortes, perturbadoras e desestabilizantes. Nada lembra a tristeza ambiente, o ludo-entretenimento adolescente, os “workshops”, esquemas e sistemas hiperescritos e descritos da bienal turca, ou a acumulação descosida que se viu em Veneza. O propósito dos artistas de Gwangju felizmente não é “desconstruir a complexidade do mundo”, criando mais complexidades. Neste lugar onde as obras dialogam e os percursos são coerentes, mesmo quando deve ser “politicamente correta”, a arte é livre.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.