Há obras que se entregam desde a primeira página. Cada palavra é um convite ao leitor para se deixar levar, e ele segue livro afora, sem nem perceber. Outras, entretanto, demandam paciência. Parecem catedrais barrocas, imensas e portentosas, onde só se entra devagar – com cautela e devoção. Grande Sertão: Veredas faz parte desse segundo grupo. Capturar a linguagem do jagunço Riobaldo, e dela se apropriar, leva um tempo. É preciso caminhar na mata fechada das palavras inventadas por Guimarães Rosa, debater-se com elas, para só depois sentir o texto se abrindo, generoso como um rio.

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Na adaptação do livro que a diretora Bia Lessa encena no Sesc Consolação, a sensação é semelhante. Aos poucos é que se vai adentrando nesse sertão recriado. Ali, não está apenas uma montagem teatral, mas uma instalação cênica. Há um excesso que espanta: barulhos de todo tipo, música, corpos que imitam bichos, e palavras, muitas palavras. Exige-se do espectador: que ele siga uma história que dá saltos no tempo, que acompanhe atores a se revezar entre incontáveis personagens, que vá lidando com estímulos múltiplos, com acertos e falhas, tudo junto. Mas, a quem perseverar, a encenadora entrega um dos mais bonitos espetáculos deste ano.

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Revelada nos anos 1980, Bia Lessa faz parte de uma geração de diretores brasileiros que aposta, sobretudo, no impacto visual. Assim como Gerald Thomas, tornou-se reconhecida pela beleza formal de suas montagens, buscando criar imagens que dessem conta de equacionar aquilo que a linguagem verbal não alcança. Em Grande Sertão: Veredas ocorre certo desvio dessa rota. O pensamento visual permanece apurado; o foco, porém, recai sobre o que foi escrito.

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Acostumada a adaptar obras literárias para o teatro – alcançou grande sucesso com as encenações de Orlando, de Virginia Woolf, e O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil – a diretora já havia transformado o romance de Guimarães Rosa em uma exposição para o Museu da Língua Portuguesa. Mas a mostra de 2006 trazia apenas palavras, fac-símiles da primeira edição do livro.

O tempo forneceu a Bia Lessa a clareza de concepção que sustenta a peça. Ela subtrai de um lado, para carregar nas tintas do outro. As imagens foram ressecadas, empalidecidas: estamos diante de um palco sem cenário, atores vestidos de negro e bonecos de feltro. As cores desse sertão, com a sua profusão de pássaros, rios, bois, tiros e sangue, serão trazidas pelo que for escutado. Cada espectador recebe um fone de ouvido, com o qual se amplificam as narrativas e os efeitos de som.

Cabe ao público fazer a síntese entre o que vê e o que ouve, fabricar o sentido com os signos partidos que lhe entregam. Assim como se dá no livro, seu papel aqui é de cúmplice. Com essa opção cênica, é possível ser fiel ao espírito da obra-prima de Rosa, mais interessado em suspensão do que em conclusões. O espetáculo só fraqueja quando não oferece à plateia a pausa, o vagar necessário à percepção. O silêncio tem seu lugar no teatro. Ajuda a compreender a estrutura do texto, fornece ao ator os meios para manejar o corpo e o verbo. Talvez pela própria escassez, os momentos de quietude da encenação soem particularmente preciosos.

Riobaldo é um jagunço que rememora batalhas, um pacto com o diabo e seu amor proibido por Diadorim. Para compor o protagonista, Caio Blat oscila naturalmente entre a narração e o diálogo, tem domínio do que diz, de suas intenções e do impacto de sua presença. Seu trabalho com os gestos é igualmente preciso. Seu corpo está impregnado pelas marcas que a vida foi deixando em Riobaldo, nele se somam as camadas de seus espantos, suas revoltas, sua força. O rigor de sua interpretação encontra par no Diadorim, de Luíza Lemmertz, e nas diversas aparições de Luisa Arraes, potente em todas as personagens que encarna.

Mas a destreza de alguns intérpretes evidencia a fragilidade de outros. Nas cenas que pedem movimentação conjunta, percebem-se inconsistências na partitura física e respostas muito desiguais do elenco. As diferenças de rendimento são igualmente perceptíveis no que se refere à voz. Mesmo que o volume esteja garantido pelo uso de microfones, a articulação parece comprometida em algumas interpretações. Considerado o contexto, uma criação em que as palavras desempenham uma função mágica, quase encantatória, pode-se supor que a clareza na enunciação daria à peça um impacto ainda maior. A ressalva, contudo, não serve para retirar os méritos da obra.

Antonio Candido, nosso maior crítico literário, dizia que nesse título de Guimarães Rosa cada um encontra o que quiser. Há de tudo: Romance de cavalaria, história de amor, alegoria do desenvolvimento do País, reflexão existencial. No espetáculo, cantos de ladainhas religiosas dirigem a plateia para uma imagem afetiva do sertanejo brasileiro, com suas procissões de santos, milagres e promessas. A trilha original de Egberto Gismonti faz o contraponto e livra a trama de limites geográficos. É bonito esse vagar entre o regional e o metafísico, entre o lastro histórico e o jorro da imaginação. Nas cenas mais bem construídas – a matança dos cavalos, a travessia do rio, a descoberta do segredo de Diadorim – o sertão está em qualquer lugar. É um universo autônomo a suplantar qualquer realidade. Sertão pode ser o mundo inteiro. Ou um pedaço de luz e escuridão dentro de cada pessoa.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000.

5ª a sáb., 20h30; dom., 18h30.

R$ 40. Até 22/10

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.