Um estudante de chinês é detido no aeroporto quando pretendia embarcar para a China. O motivo foi ter reconhecido, momentos antes, uma mulher que fora sua professora daquele idioma, também na fila de check in. Levado a um espaço reservado da Polícia Federal, o rapaz desanda a falar um discurso verborrágico, um enfileiramento de frases ditas quase sem fôlego, mistura de defesa, acusações e desabafo.
É com esse estranhamento que começa Reprodução, novo romance de Bernardo Carvalho, um dos principais escritores brasileiros da atualidade. Uma estratégia intencional: “Sempre gostei de sentir um certo mal estar porque incentiva a criação”, comenta Carvalho. “A situação se agravou nos últimos anos, quando o Brasil me pareceu mais nebuloso, uma país que não sei para onde vai. Antes, gritar contra isso fazia sentido; hoje, tudo é muito confuso.”
Para ele, a realidade anda embaçada demais e o inimigo, dissimulado. “As manifestações de rua dos últimos meses provam isso – ali não parecia estar o Brasil real, pois as que reuniam mais pessoas pregavam contra a corrupção, algo muito genérico, enquanto a que criticou (o deputado e pastor Marco) Feliciano não reuniu mais que mil pessoas, a maioria gays. Naquela, o Brasil não foi.”
A lucidez incomoda, mas alerta – em seu falatório, o estudante de chinês revela ter o mesmo perfil de outras pessoas cuja cultura é construída por meio da internet, seja na leitura de blogs, seja no acompanhamento de colunistas de opinião duvidosa. Assim, dispara contra as minorias em geral ao mesmo tempo em que prega uma iminente hegemonia da China. “No futuro, todos só falarão chinês”, apregoa ele, confiante de que, ao dominar o idioma, terá alguma vantagem.
Com isso, Bernardo Carvalho faz uma interessante leitura da internet e a profusão de redes sociais, nas quais, supostamente, as pessoas estariam interligadas. “Na verdade, cada uma está isolada diante de seu computador, protegida pelo anonimato e exprimindo seus sentimentos mais primários, nada lapidado ou sofisticado. Dificilmente diria aquilo diante de outra pessoa.”
Além do estudante chinês, outro personagem ganha destaque em Reprodução: uma agente da polícia infiltrada em uma igreja pentecostal. Ela mantém, na sala ao lado, uma conversa com o delegado que interroga o rapaz. Novamente, um turbilhão de palavras que traça um novo perfil de personagem, mas, na essência, também um ser em busca de uma identidade. “A mulher pode nem existir, sendo fruto da delirante imaginação do estudante. Mas seu discurso é mais uma das diversas formas de reprodução que aparecem no romance, do discurso da imprensa aos sites da internet.”
REPRODUÇÃO – Autor: Bernardo Carvalho. Editora: Companhia das Letras (170 págs., R$ 37).
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.