Curiosamente, Benjamin Franklin (1706 1790) foi uma das inúmeras fontes em que bebeu Machado de Assis. Pelo menos dois aforismos presentes na obra machadiana foram "importados" diretamente do acervo aforístico frankliniano.
Assim é que no capítulo LXXX do admirável Dom Casmurro, o Bruxo de Cosme Velho cita expressamente o nome do americano e a sua frase famosa: "Quando a conta é para pagar na Páscoa, a quaresma é curta".
Já nas Memórias póstumas de Brás Cubas, encontramos a seguinte máxima: Suporta-se com paciência a cólica do próximo. Temos aí um eco, um reflexo, uma ressonância da frase do norte-americano: Para agüentar as aflições alheias, todo mundo tem coragem de sobra.
As considerações anteriores constituem um bom pretexto para falar um pouco mais de Franklin. Afinal, os textos das crônicas também podem ser feitos e muitas vezes são, como agora, de pretextos. Por que não?
Franklin foi certamente um dos mais notáveis políticos norte-americanos, com uma atuação de tal magnitude que lhe valeu ser considerado um genuíno e autêntico estadista. Representou um papel decisivo no processo de libertação dos Estados Unidos do domínio da metrópole inglesa, tendo integrado, ao lado de Adams e Jefferson, o comitê que elaborou e redigiu a famosa Declaração de Independência.
Paralelamente à sua condição de homo politicus, foi Franklin um empresário importante, além de se interessar desde muito cedo pelas ciências. Note-se, porém, que essa preocupação não foi apenas de caráter teórico. Pragmático por excelência, além de autodidata, ele acabou por tornar-se um inventor respeitável ao qual se devem, entre outras invenções, a da chamada estufa de Franklin, além do pára-raios, a mais conhecida de todas.
Todos esses fatos, expressos de forma breve e concisa, são bem conhecidos da grande maioria dos leitores. O que alguns talvez ignorem e é perfeitamente compreensível que assim seja é que Franklin, considerado "o primeiro norte-americano verdadeiramente civilizado", foi também, a rigor, o primeiro escritor estadunidense.
A inequívoca condição de literato decorre da sua conspícua "Autobiografia", bem como dos artigos e aforismos publicados durante anos no Poor Richard?s Almanac (Almanaque do pobre Ricardo), mais tarde reunidos num livro que se intitulou O caminho da riqueza.
Esses aforismos, em que pese o fato de nem todos serem inteiramente originais (fenômeno que ocorre, aliás, com todos os aforistas e autores de máximas, sentenças ou provérbios, quase sempre tributários, em maior ou menor grau, dos seus predecessores), fazem de Franklin integrante de uma família ilustre que tem entre seus membros Hipócrates e Marco Aurélio, Cícero e Virgílio, Gracián e Montaigne, La Rochefoucauld e Vauvenargues, Chamfort e La Bruyére, Swift e Voltaire, Goethe e Nietzsche, Bernard Shaw e Oscar Wilde, Alain e Ambrose Bierce, O.L. Mencken e Paul Valéry, para arrolar apenas alguns nomes emblemáticos.
Para demonstrar a qualidade de Franklin como criador de aforismos, máximas e epigramas, basta transcrever duas dezenas dos seus espécimes, alguns dos quais são hoje de domínio público. Aí vão eles: Quem não quer ser ajudado, não pode ser aconselhado.*** Deus ajuda a quem se ajuda.***Há três amigos fiéis:esposa velha, cão velho e dinheiro à vista.***Quem se apaixona por si mesmo nunca terá rivais.***Não atires pedras nas janelas do teu vizinho, se as tuas forem de vidro.***Ir para a cama cedo e levantar-se cedo torna o homem sadio, rico e sábio.***Abre bem os olhos antes de te casar, e mantém-os semicerrados depois.***Onde há casamento sem amor, haverá amor sem casamento.***Se um homem pudesse ver a metade dos seus desejos realizada, teria aflições em dobro.***Nunca solicitarei nem recusarei emprego nem pedirei demissão.***Se quiseres saber o verdadeiro valor do dinheiro, pede-o emprestado.***Quem ensina a si mesmo tem um tolo por professor.***Se quiseres não ser esquecido depois da morte, escreve coisas que mereçam ser lidas, ou faz coisas que mereçam ser escritas.***Gato de luvas não pega ratos.***Trabalha como se fosses viver cem anos, e reza como se tivesses de morrer amanhã.***Não há inimigo insignificante.***Três mudanças são tão ruins como um incêndio.***Escreve as ofensas que te fizerem no pó, e os benefícios que receberes no mármore.***Um saco vazio não pode ficar em pé.***O tempo perdido não se reencontra jamais.***Três pessoas podem manter um segredo, desde que duas estejam mortas.
Para concluir, uma informação confidencial, ao pé do ouvido, para ficar só entre nós o prezado leitor e eu: não obstante a sua grandeza inconteste como político, empresário e inventor, e apesar da sua aparência vitoriana de moralista impoluto, Franklin foi também um grande libertino, como assinalam alguns dos seus biógrafos. Foi humano, diria Terêncio. Demasiado humano, acrescentaria Nietzsche. Nesse particular, aliás, o carioca foi a antítese do homem de Boston.
João Manuel Simões é escritor.