Grande foi o desconcerto quando Stanley Kubrick, após duas incursões futuristas – em 2001, Uma Odisseia no Espaço e A Laranja Mecânica -, deu marcha a ré no tempo e adaptou o romance de William Makepeace Thackeray sobre as memórias de Barry Lyndon. Antes de virar livro, as memórias surgiram originalmente em onze capítulos na Fraser’s Magazine, em 1844. Sempre intrigaram os críticos literários por serem consideradas a autobiografia fictícia do próprio Thackeray, autor de quase 30 livros, incluindo A Feira das Vaidades.
Como criador, ele foi um ácido crítico de seu tempo, investindo contra o que já definia como esnobismo das classes dominantes inglesas no século 19. Qual o interesse de Kubrick pelo escritor e por seu personagem? Barry Lyndon é a expressão do pedantismo de sua época. Ele desafia para um duelo e mata o prometido da prima. Foge, e privado de meios para sobreviver, alista-se no Exército. Volta para a aristocracia, torna-se amante da sra. Lyndon e casa-se com ela. Na segunda metade – o filme divide-se claramente em duas partes; tem até intervalo -, tendo chegado ao topo, Barry, que adotou o sobrenome da mulher, inicia o descenso social.
Completam-se este ano quatro décadas – 40 anos! – do lançamento de Barry Lyndon e o enigma permanece. O filme foi indicado para algumas categorias do Oscar e venceu em quatro – fotografia, música, direção de aret e figurinos -, mas nunca desfrutou da fama nem popularidade de outros grandes filmes do autor. O próprio Kubrick aumentou o desconcerto ao adaptar Barry Lyndon depois de desistir de outra obra de Thackeray. Sua intenção era fazer um filme baseado em Vanity Fair, mas algumas tentativas convenceram-no de que não conseguiria colocar todo o conteúdo do livro na tela e ele então se voltou para The Luck of Barry Lyndon.
Vale lembrar tudo isso agora que o Belas Artes promove uma programação especial sobre o legado de Stanley Kubrick. Comemorativa da efeméride de Barry Lyndon, a retrospectiva que começa hoje é parcial e contempla os seis últimos filmes do diretor. Além dos futuristas 2001 e Laranja Mecânica, o drama histórico Barry Lyndon, o horror O Iluminado, o drama de guerra Nascido para Matar e o erótico, em termos, De Olhos Bem Fechados, que terminou sendo o opus final do artista.
Cineasta do olho e do olhar – da palavra, também -, Kubrick provocou sensação ao anunciar que ia filmar Barry Lyndon exclusivamente à luz natural, ou à luz de velas, como na época retratada. O conceito encerrava um desafio técnico que ele conseguiu resolver graças à Nasa, que desenvolveu uma lente especial que foi utilizada pelo fotógrafo John Alcott. As implicações do fato – a colaboração da Nasa com Kubrick – só ganharam outro sentido, ou outra dimensão, anos mais tarde, quando surgiram os rumores de que o cineasta teria encenado para a agência espacial norte-americana a simulação da descida do homem na Lua.
Toda a fase final da obra de Kubrick é marcada pelos dois fatos – o envolvimento com a Nasa e a denúncia das sociedades secretas, cujos signos ele distribuiu por seus filmes. Existem obras escritas e documentários que tratam exclusivamente disso na abordagem da obra do autor. É o que confere interesse especial a essa revisão do legado kubrickiano. Como diretor, ele sempre gostou de desafios técnicos e estéticos. E também sempre gostou de testar gêneros – sua meta seria deixar, em cada gênero, sua marca, assinando a obra-prima definitiva do filme de guerra, de terror, da sátira política, da ficção científica etc.
Em 2001, Kubrick criou o mistério do monolito negro, que aparece sempre antecipando os grandes saltos na evolução da humanidade. No mesmo filme, o computador Hal-9000 possui o olho que tudo controla dentro da nave espacial. O tema do olho volta em A Laranja Mecânica, o olho de Alex, o rebelde interpretado por Malcolm McDowell, que não consegue se fechar, enquanto ele é submetido ao tratamento Ludovico, justamente para ajustá-lo às normas do mundo, das quais se afastou. Não apenas o olho, mas a palavra também volta em O Iluminado, Nascido para Matar e De Olhos bem Fechados.
O grande tema de Kubrick sempre foi a dissolução da palavra como elo que une os homens. Foi assim que a palavra ficou truncada no livro que Jack Nicholson não consegue escrever em O Iluminado ou vira ofensa no linguajar chulo de palavrões com que o sargento instrutor agride os recrutas de Nascido para Matar, ajustando-os à violência do mundo.
Poucos filmes de Kubrick tratam do amor e do desejo – Spartacus, Lolita. O sexo está no centro de De Olhos Bem Fechados, que ele adaptou (com Frederic Raphael) da Traumnouvelle, de… O coito interrompido de um casal aparentemente perfeito, mas que entra em crise quando o marido surtas diante da revelação da mulher de que sentiu desejo por um estranho. Nicole Kidman olha o estranho, Tom Cruise, confuso e enlouquecido de dor, olha o culto da sociedade secreta. O sexo está presente, mas nem tango o erotismo em De Olhos bem Fechados.
Mais num mistério dos muitos de Kubrick. Os estranhos personagens – as gêmeas – que o menino vê nos labirínticos corredores do hotel de O Iluminado , a identidade do atirador solitário na segunda metade de Nascido para Matar. E, claro, seu interesse pelas memórias de Barry Lyndon. Ascensão e queda da aristocracia. Não se pode esquecer que, no desfecho de 2001, o astronauta, Keir Dullea, envelhece num décor à Luís 16 para renascer como bebê cósmico. A derradeira ruptura do filme, a Revolução Francesa? E Barry Lyndon? Cínico manipulador de pessoas, o malandro do século 18 é produto da era que acabou na guilhotina. Uma forma de ‘iluminar’ o desfecho de 2001? Ou apenas o fascínio do passado que levou Kubrick, a vida toda, a perseguir o sonho, nunca concretizado, de biografar Napoleão? São questões que ficam para o espectador. De preferência, revendo o legado de Kubrick no Belas Artes.