São Paulo
– O escritor Luis Fernando Verissimo tinha 5 anos quando assistiu à Paixão de Cristo, no colo da empregada, no velho cinema da sua cidade, que ficava ao lado da igreja. Ele não tem certeza, mas essa deve ser a mais remota lembrança de sua relação com o cinema. “Em todo caso, não existe mais o cinema nem a igreja, desconfio que nem a empregada, mas a paixão por filmes parece interminável”, comenta Verissimo, hitchcockiano convicto, que reuniu textos sobre o cinema e outras de suas adorações (literatura e música) para compor Banquete com os deuses (234 páginas, R$ 25), coletânea lançada recentemente pela Objetiva.São histórias de deuses como Chaplin, Woody Allen, Borges, Gershwin e Fellini, que Verissimo trata não apenas com reverência, mas também com um olhar crítico. Personagens que marcaram sua vida a ponto de se transformarem em referências. “Eu não perdia filme do Tarzan”, observa na crônica O Cinema e Eu, em que faz um breve apanhado dessa paixão. “Hoje, numa revisão crítica, reconheço que Johnny Weissmuler tinha mais barriga do que era admissível, desempenhava bem contra jacaré, mas se deixava aprisionar com inquietante freqüência e, se não fosse a Chita vir soltá-lo, não sei não.”
No mesmo texto, Verissimo revela os dois filmes a que mais assistiu na vida: Gunga Din, que o tornou herói sem arriscar a pele, e A Doce Vida, que lhe deu uma estética do desespero que dispensava justamente o desespero. E encerra a crônica lamentando que, se se sacrificava na juventude para não perder nem a sessão da meia-noite, hoje não resiste à tentação oferecida pela TV e fica em casa, assistindo a um bom clássico com Humphrey Bogart.
“Tenho certeza de não ter mudado, mas o mesmo não acontece com o cinema”, comenta o escritor, que agora escolhe bem o longa-metragem que vai tirá-lo de casa. “É certo que meu tempo é mais curto atualmente, mas também o excesso de filmes com efeitos especiais, com muitas explosões e gente voando, não é nada convidativo”.
Entre os raros longas que recentemente o atraíram está Confissões de uma Mente Perigosa, a estréia na direção do ator George Clooney. “O roteiro é instigante e até o final não se sabe se a história é verdadeira ou não passou de uma criação”, comenta o escritor, que foi um ávido leitor da bibliografia cinematográfica, mas hoje lê menos e se rende a poucos, como aos filmes de Woody Allen. O cineasta novaiorquino aliás, é tema de uma crônica antiga, em que define seu humor por meio de um jogo de palavras: “Allen faz um humor intelectualmente pretensioso, cujo alvo principal é a pretensão intelectual”.
Também Alfred Hitchcock, cujos filmes revê com prazer, jurando não ter envelhecido nenhum fotograma, é alvo de seus textos, particularmente aquele em que narra seu passeio por uma exposição em Paris dedicada ao diretor inglês. Depois de se deliciar com os famosos objetos dos filmes (o isqueiro de Pacto Sinistro, a tesoura de Disque M para Matar), Verissimo conclui: “Os personagens de Hitchcock vivem seus momentos decisivos na superfície de sólidos e indiferentes símbolos americanos, um pouco como ele, um intelectual europeu, fazendo a sua grande arte disfarçada de entretenimento popular, na cara dos americanos”.
Beatles
Verissimo estende suas observações para outras áreas, como a música dos Beatles, cujo envelhecimento não acompanhou. Ele acredita que o sucesso do grupo se deveu às marcantes diferenças entre os quatro músicos. “A banda representava uma coisa – um arquétipo, os anseios e as necessidades de uma época -, e cada um de seus membros representava outra”, escreve o autor, lembrando que John era o cerebral, Paul era o certinho, Ringo era o engraçado e George o místico. “E cada um foi ser a outra coisa.”
Já na literatura, o melhor dos textos é o que cria o hipotético encontro no céu entre os escritores Italo Calvino, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov. Lá no paraíso, onde o Marquês de Sade também se encontra, embora ocupando um espaço cercado e com as asas curtas como as de uma galinha, os três discutem maneiras de coibir vocações literárias equivocadas, concluindo que uma solução seria dar a certos críticos o poder de não apenas julgar como condenar novos autores, inclusive à morte, com os próprios críticos sendo encarregados da execução, o que também os ajudaria a aguçar seus critérios.
“Não li tanto Borges como Calvino e Nabokov, mas todos foram decisivos em me influenciar”, comenta Verissimo que, desde 2000, é o escritor que mais vende no Brasil, mais até que Paulo Coelho, atingindo uma soma superior a 5 milhões de exemplares.
Outra predileção, o futebol, escapou de Banquete com os deuses (embora Pelé seja citado na crônica dedicada a James Joyce), mas Verissimo se prepara para lançar Colorado: Autobiografia de uma Paixão, pela DBA, em que relembra momentos vitoriosos do clube do coração, o Internacional, especialmente nos anos 70. “A história atual, infelizmente, já não merece tanta atenção”, lamenta-se.