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Balé sem a cor tropical

Na sala de ensaios da principal companhia de dança contemporânea do País, a coreografia ao som de Caetano Veloso ganha vida nos pés de cerca de 30 bailarinos. Montada para o aniversário de 50 anos do Balé da Cidade, a dança havia sido apresentada pela última vez no dia 25 de março. Para a maioria do elenco, era questão de relembrar os passos. Mas Grécia Catarina, de 23 anos, precisava aprendê-los. A única bailarina negra da companhia entrou em abril no elenco do balé dirigido por Ismael Ivo, o primeiro diretor negro de sua história.

A companhia ainda tem menos negros proporcionalmente do que sua cidade sede. O espaço de apresentação do Balé da Cidade, o tradicional Theatro Municipal, está situado no centro de São Paulo, com 37% da população negra. “Não representa a cidade”, diz Ivo.

Até o início de 2017, havia apenas um negro entre os bailarinos, Marcos Novais, que depois partiu rumo ao Augsburg Ballet. Atualmente, há mais três bailarinos, além de Grécia. “Imaginava que teria de ser mais do que excepcional, porque até então eu não era o perfil de ninguém (nenhuma bailarina) que estava aqui, nem de ninguém que saiu”, afirma Grécia. “A maioria das companhias, quando demite um bailarino, contrata um similar para substituir.”

Ainda que gostasse das aulas de balé clássico, o protagonismo em meio a tutus e sapatilhas de ponta parecia longínquo para Grécia, que em meados de dezembro (19 a 21) se apresentou em Um Jeito de Corpo – Balé da Cidade Dança Caetano. Ela decidiu, então, levar sua dedicação e seu talento para a dança contemporânea. “O sonho tem de ter uma possibilidade”, justifica. “Se você acha que ele é tão impossível, vira uma dor muito grande.”

Ela fala por experiência. Na única vez em que se apresentou como bailarina clássica, foi pressionada a adquirir um corpo que não condizia com o seu. “Precisei emagrecer de um jeito absurdo, perder a minha musculatura toda. Eu já era magra, acabei me sentindo fraca.”

O balé ainda impõe barreiras a negros, que, além da sub-representação, enfrentam o peso dos estereótipos impostos sobre os seus corpos. “Os elementos negros, o corpo negro, nas companhia grandes de balé, nunca tinham um papel principal”, afirma o diretor do grupo do Theatro Municipal de São Paulo.

De acordo com Ismael Ivo, que começou a carreira no exterior na companhia americana de dança Alvin Alley, no mundo todo a aceitação de negros na dança se restringe quase exclusivamente à modalidade contemporânea. “Se é moderno, os bailarinos negros dançam, porque tem o exótico, étnico. Agora, no balé, dizem que as bailarinas negras não vão fazer as pontas do jeito que tem de ser feito.”

Ele cita o bailarino cubano Carlos Acosta, que chegou à posição mais alta no Royal Ballet, de Londres, nos anos 1990, e foi comparado a bailarinos lendários como Mikhail Baryshnikov, como alguém que subverteu os estereótipos no clássico. “Ele era tão genial que tiveram de dar os papéis principais para ele”, diz Ismael. “Mas é só agora que se começa a discutir sobre a presença de um negro em uma grande companhia ou companhia estatal.”

Ex-diretor do Teatro Nacional Alemão, Ismael afirma ter se tornado coreógrafo para ajudar a traçar, ele mesmo, a representatividade de que sentia falta. “Eu não teria papéis nas companhias, poderia chegar até o corpo de baile dançando nos conjuntos, mas como protagonista seria difícil.” Fez coreografias com importantes nomes da dança contemporânea, como Pina Bausch e Márcia Haydée. Passou a criar seus próprios papéis. “Uma vez eu disse: ‘Agora vou dançar Shakespeare. Tenho a minha ideia, dançarei o meu Otelo’. Fui pegando temas e subvertendo a imagem que as pessoas têm.” Conta que entrou em territórios a que não era convidado como bailarino negro para fazer as suas traduções dos clássicos.

“Uma companhia como o Dance Theater of Harlem sempre foi considerada como ‘balé dos negros'”, conta Ismael. O grupo foi fundado em 1969 pelo primeiro bailarino principal negro do New York City Ballet, Arthur Mitchell, que queria dar oportunidade na dança clássica a bailarinos de sua cor. A escolha da localização – o bairro do Harlem, reduto negro de Nova York – foi proposital. Mitchell queria estar mais perto das crianças que ele pretendia trazer à sua escola.

No Brasil, vários projetos que se dedicam a dar oportunidades a quem não pode pagar pela dança se situam em comunidades ou em suas proximidades. Foi em um deles, o projeto social Dançando para não Dançar, na comunidade da Vila Olímpica da Mangueira, no Rio, que Ingrid Silva deu seus primeiros passos. A carioca é, hoje, a primeira-bailarina do Dance Theater of Harlem.

De uma pequena construção em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, pode surgir a próxima Grécia ou a próxima Ingrid. Quem sabe até a história se repita no plural. O Ballet Paraisópolis foi criado para levar à comunidade a estrutura de uma escola de balé. “Dar a bolsa em um local renomado é uma coisa, mas a criança precisa ir e voltar, comprar a sapatilha de ponta. Elas usam uma, duas por mês”, diz Monica Tarragó, fundadora do projeto.

A bailarina, que fez carreira na Itália antes de voltar ao País para dar aulas em São Paulo, quer para seus alunos os melhores recursos disponíveis. Por meio de patrocínios, o Ballet Paraisópolis consegue financiar as aulas e o material para dançar. “Um tutu custa cerca de R$ 1.800”, conta.

Lá dança Isabela de Souza, de apenas 13 anos. “Eu nem pensava em fazer balé”, conta. “Comecei para não ficar em casa.” A jovem bailarina enxerga o balé como uma oportunidade. “Hoje ele significa um futuro melhor, em que eu consiga até sair do Brasil.”

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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