A competência da direção artística de uma companhia de dança se torna visível para o público sobretudo em duas instâncias: repertório e no modo como seus bailarinos dançam. Nos dois quesitos, Iracity Cardoso vem demonstrando que todos os seus ricos anos de experiência como bailarina e diretora de grupos oficiais a transformaram em uma profissional admirável.
Quem acompanhou a temporada com a qual o Balé da Cidade de São Paulo (BCSP) celebrou o aniversário da sua cidade no Theatro Municipal, pôde conferir a qualidade de um elenco que sabe o que fazer em cena. Não se trata somente de cumprir bem a tarefa. Além de bem ensaiados, esses bailarinos temperam com a dose certa de elegância o acabamento preciso de seus gestos. Há tempos não se via esse tipo de desempenho por lá e, graças a um belo trabalho de cada um dos envolvidos, o BCSP recuperou o seu carisma.
Comandando desde o ano passado a cia da qual já foi bailarina e assistente de direção, Iracity Cardoso iniciou uma série de remontagens de obras que marcaram os 45 anos que o Balé da Cidade completou em 2013. Uma delas, Cantares, que está fazendo 30 anos, abriu a noite. Nela, Oscar Araiz demonstra a artesania que o tornou um coreógrafo reconhecido internacionalmente. Com música de Ravel (Rapsódia Espanhola), trata-se de uma das quatro partes de Ibéria, criação sua de 1982 para o Ballet du Grand Théâtre de Genève, companhia que dirigiu e, ao deixá-la, foi substituído por Iracity. São nove mulheres em uma espécie de cartão-postal do feminino na cultura hispânica, numa coreografia que esbanja sintonia entre dança e música.
Em seguida, a plateia recebe Abrupto (2013), de Alex Soares, ex-bailarino do BCSP, que iniciou a carreira de coreógrafo lá mesmo, em 2006, em workshops para estimular o surgimento de novos coreógrafos. Membro do restrito grupo dos que sabem criar para elencos numerosos, Alex vem burilando um vocabulário seu, mas permanece preso a temas complexos. Nesse momento de sua trajetória, a falta de um olhar parceiro, que o ajudasse a editar com rigor o que ainda fica muito retórico, é o que pede urgência. Seu incontestável talento coreográfico, cuja fragilidade continua sendo a inconsistência dramatúrgica, muito possivelmente explodiria as potencialidades que permanecem em estado de anúncio.
A força da escolha que reuniu os dois primeiros trabalhos, se esfacelou com Cantata, a estreia da noite, uma peça que Mauro Bigonzetti compôs em 2001 para o Ballet Gulbenkian, companhia portuguesa extinta em 2005, que Iracity Cardoso dirigiu. Não é a primeira de Bigonzetti para o Balé da Cidade. Em 2003, este italiano com carreira ligada à Compagnia Aterballetto produziu a irrelevante Zona Minada. Mas o que mais preocupa não é Cantata ter sido incorporada ao repertório – uma produção daquelas tidas como “boas para fechar um programa” por ter música que gruda, personagens rasos, pantomima pífia e humor rasteiro.
As sirenes de atenção foram ligadas porque está prevista uma nova contribuição sua em agosto. Cabe torcer para que a seleção do que vai integrar o repertório, tão fundamental para o rendimento artístico, não seja vitimada por sucessivos tropeços comprometedores. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.