A cada ano em média 250 longas-metragens despencam nas telas paulistanas. Sem contar mostras, retrospectivas, festivais, etc. É cinema para mais de metro, para ninguém botar defeito. A sensação às vezes é de que pouco fica de tanta quantidade. Mas, cada crítico, ao fechar seu balanço de fim de ano, constata que, afinal, a coisa não foi tão ruim assim.

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Pensemos, por exemplo, no cinema estrangeiro. Um ano que teve Dogville, Encontros e Desencontros, Elefante, Spider, 21 Gramas, O Retorno, Má Educação, Fahrenheit 11 de Setembro, e tantos outros, não pode ser considerado exatamente pobre. Para não cairmos numa tediosa lista, pensemos em blocos, por exemplo, nos filmes que trazem uma visão crítica dos Estados Unidos.

O melhor deles talvez seja Dogville, do dinamarquês Lars von Trier. Com elenco americano (Nicole Kidman à frente), Von Trier faz uma alegoria distanciada, à maneira de Brecht, da intolerância em uma pequena cidade americana. A incapacidade de diálogo e o preço cobrado pela assimilação formam os temas desse grande filme. Ok, pode-se dizer que Von Trier é um estrangeiro. Mas as críticas ao modo de vida americano vieram também de artistas do próprio país.

Fahrenheit 11 de Setembro, de Michael Moore, foi um panfleto anti-Bush que dividiu opiniões por seu unilateralismo. Super Size Me, de Morgan Spurlock, usa a arma da grosseria para detonar a dieta fast-food padronizada pela rede McDonald’s. Incomodou. No entanto, não foram esses pesos pesados que cutucaram o "sistema" de maneira mais eficiente – Elefante, de Gus van Sant, ganhou a Palma de Ouro em Cannes com seu diagnóstico da anomia dos adolescentes americanos e sua propensão à violência gratuita.

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A delicadeza também teve vez no cinema americano com o ótimo Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola. O filme, ambientado em Tóquio, se vale de um relacionamento ambivalente entre uma garota e um homem de meia-idade para falar da maneira como os EUA se vêem e vêem os outros.

O cinema europeu, como já vem acontecendo, chegou pouco ao Brasil. Mas, pelo menos tivemos o mais recente Almodóvar, o brilhante A Má Educação, e um Bertolucci de boa safra, Os Sonhadores. São dois mestres, no melhor da forma.

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Da Rússia, veio O Retorno, de Andrey Zvyagintsev, sobre os efeitos da figura paterna ausente sobre dois adolescentes. A Rússia, agora sem pai, mãe, ou qualquer outra figura protetora, pode muito bem se mirar nessa história filmada à maneira de Tarkovski.

Outro bloco interessante é o do cinema latino-americano, em especial o argentino que, se não chegou em grande número, pelo menos exportou para nós o que de melhor produziu. O Outro Lado da Lei, de Pablo Trapero, O Pântano, de Lucrecia Martel, e Abraço Partido, de Daniel Borman, formam um painel interessante de leitura da Argentina, que talvez se complete com o terno Valentin, de Alejandro Agresti. São filmes que vão da doçura à exasperação e mostram uma disposição narrativa invejável nesses diretores. Estão filmando bem à beça e sabem narrar uma história de modo direto, sem firulas, usando o subentendido.

Ainda sobre os estrangeiros, devemos lembrar o iraniano Ouro Carmim, de Jafar Panahi, o chinês Plataforma, de Jia Zhang Ke, e Primavera, Verão, Outono e Inverno…e Primavera, de Kim Ki-Duk. E, sim, o brilhante As Bicicletas de Belleville, de Sylvain Chomet, o máximo a que chegou a sofisticação dos desenhos animados este ano.

Brasileiros – O número expressivo de lançamentos – 50 longas-metragens – não correspondeu à fatia de público esperada. Ano passado, os filmes brasileiros tiveram 22% de participação no mercado. Em 2004, caiu para 15%, o que já era esperado, pois não houve grandes sucessos como Carandiru e Lisbela e o Prisioneiro. No entanto, esse número de lançamentos já é algo a ser comemorado em si.

E 2004 será lembrado também como o ano dos documentários com 17 lançamentos do gênero nas telas. Alguns com grande destaque, como a visão do inferno do Carandiru de O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, e a dupla Peões, de Eduardo Coutinho, e Entreato, de João Moreira Salles, sobre Lula e os metalúrgicos que participaram das greves do ABC. São filmes que fazem um registro e uma interpretação da história contemporânea brasileira.

No âmbito da ficção não se pode dizer que a quantidade tenha se traduzido em qualidade. Houve muita coisa descartável, como A Dona da História, Viva Voz e Sexo, Amor e Traição.

Para compensar, alguns filmes menores, em termos de orçamento, marcaram o ano com sua criatividade, casos de Narradores de Javé, de Eliane Caffé, e Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach. Contra Todos, de Roberto Moreira, trouxe a proposta mais radical, com sua visão nada amena da periferia paulistana.

Mas filmes de grande orçamento, como Cazuza – o Tempo não Pára, de Sandra Werneck e Walter Carvalho, e Redentor, de Claudio Torres, provaram que a intensidade pode andar de mãos dadas com orçamentos mais generosos. Ou seja, pode haver vida inteligente, mesmo na autofágica e incipiente indústria cinematográfica brasileira.

E, sim, o grande Julio Bressane lançou mais um título da sua filmografia, singelamente chamado Filme de Amor. Cerebral, construído ao extremo, tem, no entanto, o desfecho mais apaixonado e apaixonante do cinema brasileiro deste ano. De arrepiar. Um encontro da inteligência com a sensibilidade. Pensando bem, nada mau para um ano considerado fraco.